quinta-feira, 3 de julho de 2014

Fantasia
                Abriu o vinho.  Tinha naquela bebida secular e refinada a esperança de cessar seus pensamentos negativos sobre os recentes acontecimentos. Doce ilusão. São em momentos toscos, cotidianos assim que mais profundamente refletia. Aquela simples ação desencadeou em sua mente a mais inesperada explosão de sinapses. Agora, não querendo pensar sobre a vida, parece-nos que sua vida não permitiu. Como se sua consciência estivesse numa relação submissa, em que não mais tivesse voz de controle, agora resolvera gritar. Tão alto que ele não mais poderia evitar. Sua única alternativa seria travar o temido diálogo interno.  Conversa esta que muitos preferem ignorar a vida toda, seguindo com sua felicidade instantânea, vazia e ludibriosa.
                Roberto, nosso herói sem heroicidade, resolvera enfrentá-la. O simples movimento com o abridor enxurrou suas frustrações dos últimos anos, que apenas se somaram com as mais recentes. Abrira mão de muita coisa na sua vida. Deixara para trás prazeres, satisfações, para apenas tentar corresponder às expectativas de outros.
“Mas não é isso o que todos fazem?” Argumentava com a Consciência.
“Provavelmente, e é por isso que em muitos a frustração reina. E com ti, Roberto, não fora diferente. És um mortal, comum, ordinário. Cuspo-te na cara isto agora. E como podes aceitar? Aceitar ser normal, se sentindo diferente. Eis uma eterna provocação do ser humano. “
                Pediu autorização para a Consciência de prosseguir com a peleja na varanda, com o pretexto de se sentir mais confortável.  Disse-a que suas expectativas na época eram muito irreais, difíceis de prologarem-se na vida adulta. De nada adiantaria ser feliz sozinho, satisfazer os desejos imediatos e não pensar no implacável amanhã.         
Como se sabe, sua interlocutora não vivia um momento de completa lucidez. Ela estava revolta, de forma que as poucas palavras não conseguiam lhe fazer qualquer efeito. Era a vez dela narrar as aflições acumuladas. Da parte de Roberto, já se encontrava mais do que sufocada.
                Cruel, começou a lembrá-lo dos erros recentes, passados e até dos mais distantes. É característica sua, desculpava-se, por mais tempo que passasse ele poderia esquecer, ela, jamais. Assim prosseguiram com um monólogo brutal que se revelava necessário.
                Levantou. Neste momento pediu licença às memórias. Sentia a fina brisa de junho em sua pele. Respirou fundo, tentando compreender o que se passava. Antes de arrepiar-se, soluçou. Era a realidade adentrando em seu corpo. Dela também não poderia fugir. Pensou que nesta noite sua única companhia seria a garrafa de vinho e as estrelas do límpido céu do interior. Sua companhia, entretanto, revelava ser mais forte do que ele próprio. Era um destes momentos da vida em que se tem uma verdadeira epifania duradoura sobre o próprio ser. Raros instantes em que tudo se larga para voltar à vertente da alma e das ações, questionando o que então se tornara.  
                O que mais queria era sair com um veredicto daquela conversa, mas nem ao menos iniciara. Estava ali, sozinho na fria madrugada procurando respostas para seu coração. Novamente respirou fundo, olhos fechados, o sereno era tão palpável que já se sentia seguro de si para lembrar e remoer o que havia acontecido há pouco. Ébrio também, nada mais poderia detê-lo de seguir com sua jornada rumo ao ponto final da sua situação.
                Todo este diálogo eterno originou-se no dia anterior. Que era justamente o mais esperado do ano, aquele que jamais poderia esquecer.  O dia que celebrava seu nascimento. Não tinha por costumava travar festas. Neste ano, entretanto, devido às diversas insistências, não pôde recusar.  Para Roberto, mais importante do que celebrar, receber presentes ou qualquer coisa, era ter a ternura dos que mais amava. Reunir os mais próximos sempre fora um de seus maiores prazeres e só se sentia completo com completa companhia.
                Devido ao tamanho apreço que dava a datas como esta, procurava fazer o mesmo com quem amava. Dificilmente perdia um aniversário ou deixava de mandar seus profundos desejos a quem nutria verdadeira afecção. E fora assim ainda este ano, com aquela para quem lhe abrira o coração. Viajante nato, ele estava na mais distante terra que já pisara quando se lembrou do dia de sua amada, já antecipando-lhe o presente.  Planejou a dádiva e na certa data lhe fez a felicidade pura.               
                Agora, na sua vez, nada recebeu e nada ela retribui. Seus contatos anteriores se frustraram, mas persistia ainda a fantasiosa esperança de que aparecesse. E fora mesmo como uma fantasia. Daquelas se agarram tanto à pele que não mais é possível dizer o que real e o que é fraude. Para quem se veste é uma complementariedade ao vazio interno, que sustenta ocultas fissuras do ser.  Mas, enquanto dura, deixa de ser fantasia e se torna sonho ilusoriamente concretizado. É real, palpável, uma espécie de esperança tangível sem que tenha sequer existido. Vestiu a fantasia com a certeza da presença, adorando a ideia, se divertindo com as futuras risadas. Quando a fantasia cai, desaba também a pele.         
                O que queimou como fogo aquilo que vestira não foi simplesmente a abstenção da amada, mas o descaso, a completa indiferença de como foi tratado. Quanto esforço seria necessário para um telefonema? 


                A Consciência havia se acalmado e escutara pacientemente seu mestre discorrer em lágrimas. Sentia que agora ele estava partindo de si, da honestidade e das sensações. Quando Roberto finalizou o relato, era hora de ela intervir.  A expectativa é que fosse sádica, prolongando seus desejos e impondo-se de forma arrogante. Mas não fora. Apenas concluiu:
 “Assim como abriste o vinho hoje, decisões nos guiam a todo o momento. Disso já    sabes, ou deverias saber. O problema que a tudo acarretara não foste a falta da presença daquela que desejava, mas sim a decisão que tomara. A porta que abriste. Falaste em fantasia, mas quem criou-a não fora eu, fora seu arbítrio. Aprenda que antes de abrir uma porta, estamos num ambiente. Muitas vezes não pensamos nisto. O recinto que ali nos encontramos talvez contenha muito do que já precisa e do que te faz feliz. Ao espaçar-se para novo local, põe em risco o que já tinha. A fresta que traz o ar gélido de novo local, também suga aquilo que já é teu velho conhecido. É apostar.  E aposta, Roberto, quando envolve muita coisa, tem como desfecho a decadência do que se era antes, mesmo que dela saias vencedor.
                A fantasia, tão lembrada por ti, nada mais é do que uma forma de tentar recuperar o que já se tinha e de idealizar o desnecessário."
                
                Tomou o último gole do merlot e por algum motivo não mais se sentia sozinho. Ganhara força, teve o sono pesado. Contudo, apesar de não lembrar no dia seguinte, sonhou com um beijo da razão das suas lágrimas.


                                                                 *Aqui o mundo é sereno*



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