terça-feira, 22 de julho de 2014

Tic-Tac

Tic-Tac

                Enquanto tudo acontecia, meu corpo parecia se transportar daquele momento horrível, que marcaria para sempre a minha vida. Não mais pulsava, apesar de muito vivo. Quem me dominava eram as memórias dos melhores momentos que vivemos juntos. O destino era fatídico, certo, implacável. Desde o pequeno erro ao volante já sabia seu funesto desfecho. Tudo era mais forte do que jamais poderia imaginar. Irresistível, impotente, eu apenas figurava na cena que se desabrocharia na flor da morte, figurava como protagonista do episódio, sem poder agir.
***
                Algo no ar estava elétrico, pesado. Chovia e a neblina decorava funestamente nossos arredores. Sorríamos. Nossa estação preferida no rádio tocava um animado Rock Clássico. Minha mão encontrava a sua, voltávamos de uma viagem de fim-de-semana quando de faixa troquei. Chegaríamos a tempo do jantar. Luzes altas vieram em nossa direção.
Tic-Tac
                Mantinha o desejo de viajar de balão como cobiça, verdadeira obstinação. Talvez fosse uma destas peças pregadas pela vida, em que respostas nunca poderão ser conhecidas. Por que eu desejava tão fortemente isso? É como ver um fenômeno raro no céu, um clarão feito uma exagerada estrela cadente. É lindo, mas rapidamente nos distraímos. Afinal, não se tem resposta para aquilo. Ignoramos e rapidamente o fenômeno se esvanece da frágil memória.
                Como se conquistador do mundo, na maneira mais suave de um ser humano voar, sonhava com uma vista privilegiada. Na Turquia a concretude alcançou o mero devaneio e pude voar. Voar. Junto ao cesto que nos levava ao céus, lá estava ela, Rosana, meu amor. Tirando fotos, tão entusiasmada como eu. Os outros turistas que ali estavam entendiam aquilo apenas como um grande passeio. Mas não nós, nós estávamos voando. Voand...
Tic-Tac
                As luzes se aproximaram ainda mais, refletiam-se na neblina, no para-brisa e em nossa retina. Perdemos completamente a visão, não podendo saber a distância que nos separava do inevitável. Você me olhou. Clemência, susto, amor, desespero. Tortas linhas registram mil sentimentos do autor, mas quantos sentimentos o olhar não carrega?
Tic-Tac
                Por sorte ainda estávamos no início de nossa viagem. E embarcamos sozinhos para a aventura, com o mundo em nossas mãos. Foi natural permanecer juntos. Foi natural se apaixonar.
                O passeio pelo estreito de Bósforo é singular no globo. Separa o mar negro, ao norte e o mar de Mármara, ao sul. Seria apenas a ligação entre dois corpos de água se não também delimitasse a fronteira entre a Ásia e a Europa. Fronteira entre culturas tão diferentes, histórias milenares, continentes tão ricos...Aquela ainda fora a divisa entre a paixão e o amor, lá começamos o namoro. Não deixamos que tudo se tornasse aventura de férias de verão. A aventura duraria por toda nossa vida.
Tic-Tac
                O baque do degrau que separava a pista do acostamento pareceu-lhe dar um choque de realidade. Nada mais saía de sua garganta além de estridentes grunhidos irreconhecíveis. A colisão fora forte demais, o maior impacto físico que já sentirei em vida terrena. Vidros estilhaçados em incontáveis pedaços da morte caíram em câmera lenta para todos os lados. Tudo aconteceu tão rápido feito um raio isolado em um entardecer de março. Dentro do carro, entretanto, a cena se repete na mínima velocidade possível. Minha memória jamais me permitirá ignorar isso.
Tic-Tac
                Agora as cenas avançam mais rapidamente. Não são episódios esporádicos e marcantes de nossa feliz vida de casal, são imagens aleatórias quase indistinguíveis. Primeira vez que firmamos passos em nossa terra natal, primeira vez que vivíamos uma vida rotineira, brigas, conciliações, amor, amor, jantares, o pedido em casamento...
Tic-Tac
                Por que eu estava olhando para o seu lado? Não via mais o que acontecia à minha frente, mas presenciei sua ida. O impacto fez um baque surdo no seu pescoço, num movimento brusco e precoce. Assim encontrou os estilhaços logo à frente. Sangue, sangue.
Tic-Tac
                O que aconteceu depois de todas essas memórias foi a junção do utópico com a realidade, do perfeito com a desgraça, do passado com o presente. Talvez eu estivesse esboçando até um sorriso enquanto tudo acontecia, devido à qualidade dos flashes que me atingiam. E então sem aviso, sem restrição, eufemismo, suavidade ou clemência, a última de suas cenas me atingiu. Aquela que acontecia simultaneamente. Eu não mais poderia escapar do real.
Sangue,
Eu quero voar de balão.

Sangue.

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