quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Carta



Esta é a primeira vez que escrevo em 2020. A primeira vez desde que tudo ocorreu, que as certezas antes pairantes em sonhos concretizados sucumbiu a uma realidade fria e escondida. Será também a primeira carta que te escrevo assim, em primeira pessoa, tentando deixar a ficção de lado e trazer os sentimentos da maneira mais direta possível, ainda que por entre eles exista sempre o caminho da literatura e do buscar das palavras. Talvez esta carta nunca chegue para ti, ou talvez seja também a última. Começarei confessando-te que a escrita é um vício absoluto. A relação das linhas com dedos tremulantes é feito o pó e o sistema nervoso. Quando sob seu efeito, tudo parece fazer sentido e sinto-me poderoso pelo seu estímulo. De tanto escrever, já confundo o meu eu dos rabiscos e aquele do espelho. Não somos dois, mas sim a fusão complexa num elixir egoísta. Talvez seja por isso que passo tanto tempo sem o olhar da página em branco, seca, a julgar. Temo encontrar-me somente nela, para somente a ela confessar os mais profundos segredos de uma existência trivial. Paradoxalmente, é a melhor ouvinte que já encontrei. Todas as respostas escancaram-se num lapso de puro prazer e dor total. As ideias de como aproveitar a droga pipocam a todo o momento, entregando a possibilidade de uma distopia feliz e assustadora. Procrastinar esse prazer não vem somente da apatia de dias vazios sem sentido. É controlar a dose para tentar apegar-se ao mundo das coisas e da realidade, ainda que tudo pareça distante. Um mito da caverna ao contrário, onde a luz pode cegar de forma permanente para nunca mais ver o céu da mesma forma.

Por muito tempo eu temia jamais encontrar o deslinde de meu destino, pois este era a raiz da minha inspiração primeira. Temia ser acompanhado para sempre apenas do julgar destas páginas, num surto solitário de autoconhecimento em vão. Em todas as vezes que ousei fundir as minhas existências, a do vício e a real, escrevendo para destinatário certo, obtive nada além do sofrimento em sua essência. Não busco reconhecimento, apenas compreensão e cumplicidade ao mesmo nível do vício maldito. Sonhei tantas vezes com essa possibilidade que parece, outra vez, que a esperança diluía-se no meu eu viciado, onde somente ele podia criar suas fantasias e viver como se realidade fosse. Até deparar-me com seus olhos verdes, num encontro casual. Ao vê-los, a chama dos meus eus brilhou a ponto de transbordar, mas não de cegar. Por alguma razão eu sabia que tudo começaria outra vez, que entregaria novamente aquela fusão perigosa, arriscando machucar ainda outra vez. Só que, de forma inédita, foi a certeza absoluta que pairou desde o início. De que a história apenas começava e que muito compartilhamento viria.

Nesses dias tão tristes e vazios, nas conversas pesadas que tivemos, ouvi de sua boca já tão familiar a indagação de se o amor vinha do ser amado, do reconhecimento e da correspondência. Se não era, então, individualista e mesquinho. Creio que pela divagação anterior talvez tu já tenhas a resposta, de que não, ele advém é do mais puro compartilhamento, transborde e confiança. A correspondência apenas sustenta o que já existe, enquanto, no nosso caso, flores brotavam dos cantos mais remotos dos nossos eus. O medo do vício passou a ser secundário, pois a realidade estava presente. A liberdade sonhada brilhava para dar razão a todos os desejos acumulados, como se, de alguma forma, ela estivesse sempre ali, a espreita para mostrar-me o outro lado da vida. E isso não viria com qualquer uma. Digo isso pois a energia que emana de nossos corpos é vital e em pura sintonia. Contudo, ainda a mais resistente das plantas pode adoecer e, eventualmente, morrer. Caso fosse amor do mundo das ideias, ele seria completo antes da própria realização, a existir independente das vontades. Perfeito na essência, como por tantas vezes criei. O nosso, muito mais complexo, demandava experiências e cuidado que nunca tive. Não exatamente por falta de vontade e jamais por não confiar no nosso amor. Não. Apenas e simplesmente por que, aquele que muito escreve sobre a teoria do amor perfeito nem sempre tem todas as respostas da prática. O vício as carrega num ímpeto violento e revela nada além do que, em meu âmago, já é conhecido. A realidade, por sua vez, traz desafios onde o erro é certeiro e único professor. E como erramos. Talvez a sabedoria seja desacreditar na completude das próprias existências e curvar-se a esses ensinamentos, sabendo que, sem escutá-los, volvemos ao vício do criar solitário. A dificuldade do perdoar é justamente assumir que a realidade é dura e viver dos próprios vícios é prazeroso e até suficiente, mas facilmente enganoso. Como havia dito, a luz dessas ideias é tão forte que pode cegar. Ao final, somos apenas a poeira que ainda desce.




segunda-feira, 21 de maio de 2018

A cueca


A cueca
               Doutor Ernesto era um tipaço. Faz tempo que não vejo o sujeito. Dizia que quando se aposentasse ia mudar pro interior plantar tomates. Deve ter mudado mesmo. E como gostava de tomate! O maluco punha tomate até no que já tinha tomate. Suco? Só de tomate, claro! Mas tinha uma razão para isso. Ele era cirurgião. Não lembro de quê agora, acho que do coração. Isso mesmo, do coração! E dizia que se todo mundo comesse tanto tomate assim ele teria é metade do serviço na mesa de cirurgia. Eu, que achei melhor não contrariar o doutor, passei a comer muito mais tomate. E até agora tô vivo! Mas enfim, além de gostar de tomates e ser cirurgião ele era também japonês. Bem japa mesmo, o pai e a mãe dele tinham vindo do Japão direto pra Santos. Só nunca descobri por que chamava Ernesto, vai saber. Ele falava fluentemente o idioma e era todo apegado às tradições de lá. E ô cara metódico. Juro. Bem estereótipo de japonês mesmo, fazia tudo certinho. Colocava lixo no bolso para não jogar nem na rua nem na lixeira. Era o lixo dele, dizia, ele que tinha que cuidar. Dava seta no carro mesmo que fosse três da manhã numa rua escura da Brasilândia. Nunca começava uma frase sem bom dia ou por favor. Falava baixinho, sabe? Como se tivesse é pedindo desculpas por falar. E tinha horário pra tudo o doutor. Acordava todos os dias às 06:30 da manhã, mesmo que fosse feriado ou sei lá, tivesse caindo o mundo. Tomava um copo de suco(de tomate) e ia correr pro Ibirapuera. Dava duas voltas, pegava o carro e, em dia da semana já ia pro hospital direto. Tomava banho lá e só saía às sete da noite. Passava na padaria e voltava pra casa. Dava pra acertar o relógio vendo o doutor passar, sério. Mesmo com trânsito o danado nunca atrasava pra nada. Usava sempre uma camisa de cor clara, uma calça social caqui e sapatos marrons. Quando batia um vento ele vinha com um coletinho, nada muito pesado.

                Nos conhecemos aqui no bar mesmo. Sim, ele vinha pra cá. Tomava dois chopes. Um no primeiro tempo e outro no segundo. Nunca a mais, nunca a menos. É que eu esqueci de falar o mais importante. Além de gostar de tomates, ser cirurgião e japonês, o doutor era corintiano. E não era pouco não, desses que só vêm pra ver libertadores. Ele vinha era pra ver até a copinha. Mas quem visse ele aqui não imaginava que era cirurgião, todo comportado, todo educado não. Da porta pra dentro do bar o japa virava quase um holligan. Falava palavrão pra caralho, se deixasse xingava até o mascote, juro. E como vibrava com um gol então. Era daqueles sujeitos que o jogo fica até melhor sentando do lado, abraçava todo mundo, berrava de estourar as cordas e se o timão metia mais de cinco pagava até umas rodadas pra galera(pra ele não, eram só dois mesmo). Fui conhecendo o doutor e ficava impressionado com a mudança do cara. Começamos a ir pro Pacaembu juntos. No primeiro dia que fomos ele passou em casa e eu jurava que ele ia botar uma camisa do Coringão né, mas que nada. Era camisa, calça caqui e sapatos marrons. Ele pegava fila certinho e acho que era a única criatura do estádio que sentava no lugar marcado. Mas juiz apitou, pronto, já sabe.

                Até que chegou o grande dia, o mais esperado da vida de qualquer corintiano. A grande final da liberta de 2012. Corinthians e Boca, as torcidas mais apaixonadas das Américas. Romarinho tinha metido um lá na Bombonera, encobrindo o goleiro. Agora era só ganhar em casa. Só não né, tava todo mundo quase tendo um ataque do coração dois dias antes do jogo, sem dormir nada, sabe como é. Se o timão perdesse o doutor ia operar metade do estádio.      

                Fomos juntos e ele encasquetava que tinha que chegar duas horas antes. E nada de comer espetinho ou tomar breja na porta do estádio não, tinha que entrar duas horas antes. Eu perguntava o porquê. Ele gostava de sentir a vibração do estádio, dizia. A gente tava quase chegando no Pacaembu quando o doutor ficou todo branco. Pensei que era do jogo né, aquilo lá tava mexendo com qualquer um. Mas não. Ele falou que a gente ia é precisar voltar pra zona norte. Eu pensei que ele tava ficando maluco, correr o risco de perder o jogo, imagina! Mas não mesmo! Ele insistiu, disse que precisava voltar de qualquer jeito, tava quase chorando o doutor. E sem explicar o porquê. Tudo bem pensei, a gente ia é ver o Corinthians ser campeão juntos. Ele voltou bem rapidinho no Corolla dele(mas continuou dando seta). Entrei na casa, toda arrumadinha e ele disse que só ia trocar a cueca. Que sem a cueca da sorte o timão não ia ganhar não.

                Trocou e voltamos. O timão ganhou, foi campeão e ele até tomou três chopes aquele dia. Era a cueca.
               


sábado, 20 de maio de 2017

O último trem

Eu saí de bota. Estou particularmente feliz com isso. A chuva afirma-se afastando qualquer caráter de efemeridade. Veio para ficar, para deixar o céu turvo durante todo o fim de semana e isolar-se dos olhos mais atentos, impotentes diante de uma monotonia cinza. Anoiteceu e ela não cessou, de forma que meu calçado mostrou-se mais do que adequado. Digo isso pois normalmente escolho qualquer tênis, nem ao menos abrindo a janela para certificar-me do tempo lá fora. Então bastam as primeiras pisadas para sentir meus pés úmidos, desprotegidos por uma camada fina demais de tecido. Mas hoje não. Bom, é o mínimo que se podia esperar de planejamento. Já fazia dois dias que eu não saía de casa, apenas apreciando o conforto de meus ouvidos diante da carícia que a chuva faz no mundo além daquela minha pequena janela. É um conforto teimoso, que insiste em não encarar a realidade. Criando para isso uma nova, maligna.

Minha bota então vence as poças que se desafiam à minha frente. A calçada é de um mesmo cinza longo. Já passa da meia noite e é hora de voltar para casa. Foi um avanço, afinal. Cinco horas longe, respirando um ar purificado por gotas ainda virgens. Desço as escadas de uma estreita entrada do metrô. O vento é comprimido e ganha sabor de solidão.

Não há ninguém na estação. Observo a cena rara, ficando apreensivo por talvez ter perdido o último trem. Mas não. Ainda restam sete minutos, de acordo com o painel eletrônico falhado. Sete minutos apreciando uma solidão espelhada numa quarta feira sem objetivos. O outro lado da estação é separado pelos trilhos que partem para sentidos opostos. Está longe de ser um ponto chave da linha, então o espaço não é muito grande. Observo um homem descer pela exata escada de simetria oposta à que eu desci. Ele olha para baixo. Não para o celular ou vendo seus passos. Ele parece querer olhar para o nada, evitando qualquer horizonte. Senta-se exatamente no meio da fileira de cadeiras amarelas. Continua a olhar para o chão, sem que tenha percebido minha presença do outro lado. Apesar de jovem fica evidente, assim cabisbaixo, seu problema de calvície. Usa um jeans largo demais para seu corpo alto e de ossos salientes. Olhos insondáveis através das lentes de seus óculos retangulares. Se antes eu achava minha solidão dilacerante, a daquele sujeito parece me dar ainda mais agonia. Ao invés de sentir compaixão, de querer conversar com o sujeito e trocar solidões, sinto na verdade calafrios de vê-lo. Como se daqui, talvez uns 15 metros de distância, eu pudesse sentir sua energia mais do que negativa.

Chega o trem do sentido contrário ao meu. O homem entra num vagão praticamente vazio, com somente uma senhora dormindo tão profundamente que sequer nota a parada do veículo. Ainda assim, pela primeira vez, o sujeito levanta a cabeça, olha para os lados e escolhe sentar no assento preferencial, para então voltar ao seu transe sem horizontes.

Ainda faltam cinco minutos. O dispositivo eletrônico parece descompassado com meu relógio interno. Chego quase a sentir falta do jovem calvo, pois sei que agora meus pensamentos volverão à razão do meu sair e a razão do meu andar despretensioso pela metrópole. Você. Não consigo deixar de lembrar-me daquela noite.

Sob a luz cintilante de um manto de bilhões de mundos e estrelas era o universo de seus olhos que continha maior brilho. Nós, parados, observando um céu que parecia mero cenário para o evento onde estávamos.

Agradeço por estes pensamentos não se prolongarem, não dando margem a qualquer arquétipo de sofrimento premeditado. Porque outro homem surge na estação e se aproxima de mim. Restam quatro minutos. Meu cérebro pode enfim ocupar-se de outros devaneios além daquilo que me causa dor. Ele se aproxima ainda mais, já tomando uma distância desconfortável se levarmos em conta o vazio do lugar. Fico curioso com suas atitudes. O homem parece sentir mais frio do que eu. Veste um moletom preto e bastante pesado. O capuz encobre seu rosto e ocorre-me, somente agora, que talvez aquela cena fosse atentatória contra minha segurança. Que o metrô não era ilha em nosso mundo enfermo.
Tarde demais.

Sinto o cano frio da arma pulsar através da minha camisa fina. Ele senta na cadeira ao lado da que eu estou e vira a perna em minha direção. É o primeiro contato que tenho com alguém em dois dias. Como que por instinto, sem querer, dirijo meu olhar aos seus olhos. São opacos, carecem de brilho. O oposto aos seus. Droga, foi você a primeira pessoa que pensei nesta hora fatídica. Talvez o encontro de olhares tenha durado dois segundos, mas pareceu muito mais longo. O relógio marca que faltam três minutos e rapidamente desvio o olhar para baixo, ouvido as ordens do assaltante.

Não consigo parar de pensar nos olhos opacos e sem vida do cidadão, como se quisessem deixar claro que ali naquela situação a única pessoa que poderia perder alguma coisa era eu e que os objetivos dele transpunham a dose de humanidade que eu tentava carregar comigo. Recado dado. No entanto, sinto um enorme pesar pela indiferença dele e pela completa imprevisibilidade da minha existência. Naquele momento que meus olhos o encontraram felizmente ele não notou. Fico me perguntando o que aconteceria se tivesse percebido que eu descobri o segredo daquele rosto. Talvez eu tivesse levado um tiro, com o homem correndo para longe em seguida, assustado pelo barulho metálico ecoado nos trilhos que se perdiam numa escuridão sem fim. Então meu sangue escorreria por aquela estação de metrô vazia, manchando um chão cinza que já vira de tudo. E se o sujeito calvo ainda estivesse esperando? Será que aquele estampido teria sido suficiente para trazê-lo para a única realidade possível? Ou será que ele permaneceria o tempo todo de cabeça baixa, inerte diante da vida - e da morte - que cruzavam seu destino?

Penso ainda na mancha que escorreria pelo chão. Se eu morresse ali mesmo, antes de chegar ao hospital, haveria toda uma cena que quebraria momentaneamente a solidão do lugar. Chegaria a algum momento um funcionário do metrô, seguido pela polícia, depois algum paramédico. Em seguida talvez alguém da polícia científica, que trabalha de plantões as quartas e que enxergaria normalidade na cena, que fotografa para um inquérito que provavelmente seria arquivado. Porém, depois de todos esses especialistas, restaria meu sangue ainda com odor acre que por fim molha minha bota tão planejada. Alguém teria que limpá-lo. Imagino então o funcionário, ou funcionária, de limpeza do metrô no turno de manutenção, em que não há absolutamente ninguém por perto. Ele limpa o sangue de um cadáver já retirado, provavelmente perguntando-se de quem pertencia.  Se era jovem ou velho. Culpado ou vítima.         

                Já entreguei todos meus pertences. Os danos não foram muitos. Tinha 20 reais na carteira e meu celular já estava com a tela trincada, eu apenas estava adiando sua troca mesmo. O homem corre para fora antes de o relógio marcar um minuto.

Volto a pensar na pessoa que limparia meu sangue. Em sua solidão extrema, num processo de desumanização praticamente completo. De certa forma começo a recobrar a consciência após a dose de adrenalina. Eu sobrevivi àqueles olhos opacos. E, afinal, não estou tão só. Penso em todas as pessoas que teriam ficado arrasadas com a notícia. Sinto-me pequeno diante da minha própria existência regrada por esperanças alheias.  Vejo o trem se aproximar, lançando uma rajada de vento gélido que parece acabar com o sabor de solidão. Traz um ar de concretude, de metrópole, de vida.


Embarco. Há mais três pessoas no vagão, todas em seus celulares. Ainda assim, me sinto seguro, acompanhado. Vivo. E sem que esta vida precise do brilho dos seus olhos.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Sobre Bob Dylan, grãos de areia, ondas e estrelas.

And admit that the waters
Around you have grown
And accept it that soon
You'll be drenched to the bone.
If your time to you
Is worth savin'
Then you better start swimmin'
Or you'll sink like a stone
For the times they are a-changin'
               
               Não sei quanto tempo esperei para isso. Para que a sutil luz do pôr-do-sol entrasse pelo porta-malas aberto do Jeep, enfim o destino final da longa jornada. Totalmente só na infinidade de areia. Meu avô, que jamais conheceu o mar, certa vez me disse que há mais estrelas no universo que grãos de área na terra. Ele adorava contar fatos assim, surpreendentes, que jamais saberíamos se eram verdade ou não. Eu decidia acreditar, mal podendo esperar para o próximo. Ainda que homem tão simples, do campo, era para mim a pessoa mais sábia que já conheci. Estremeço. Não pensava nele há muito tempo. Não mais consigo lembrar todos os detalhes de seu rosto. O tempo é cruel, inabalável. Seriam agora as curvas de minha velhice parecidas com as dele?

                A praia é longa, a percorri por quase uma hora até conhecer seu fim, quando algumas rochas esparsas tocam o sopé da montanha coberta por uma vegetação rasteira, salpicada pelo ritmo do mar. As marcas do pneu ficam para trás, já sendo parcialmente cobertas pelo vento incessante. Um casal de gaivotas descansa ao longe, o único traço visível de vida por quilômetros. Sem saber que as ondas que se quebram em infinitas borbulhas de um compasso repetido escondem um novo mundo e que tal compassar, na verdade, não se repete jamais. Minha pele, já muito bronzeada e castigada pelo tempo, denuncia a vida de um velejador que numa manhã cinzenta de setembro despertou e decidiu iniciar seu sonho. Que naquela manhã fria enfim começou a cruzar a ponte entre a vida e os sonhos, eterna pergunta sem respostas, de um dirigir na mais densa neblina, onde não se vê sequer um palmo à frente.

Tantos creem que a ponte se constrói apenas com esforço, trabalho, para num dia longínquo poder cruzá-la. No entanto eu me recuso a ser tão pragmático.  A ponte só existe quando enxergamos por intuição e , a despeito dos nevoeiros, firmam-se as mãos ao volante, de maneira ainda mais forte. Mesmo que por anos intermináveis se conduza sem ter certeza alguma do porvir.

Pele que também se enrijeceu após aprender a não só velejar, mas também mergulhar, sem volta e de cabeça, naquele novo mundo azul, do farfalhar das ondas e do temor da fossa abissal de sua morte. Dor irrefutável. Sonho que era nosso, porém que fez da ponte caminho para apenas um. Meu cenho perdeu algumas curvas de nossos sorrisos juntos, mas ganhou a certeza que o caminho almejado seria vencido, agora em  sua homenagem. Era  obrigação daquele rosto ancião conhecer lugares longínquos, vencendo as ondas bravias em todas as direções possíveis.

Será que meu avô também contava com a areia do fundo do mar?

Começa a escurecer de verdade. Já são quase 9 horas e pouca luz invade os vidros. Estrelas faíscam na moldura de nosso mundo. Minha pele tão quente, exposta ao fulgor constante, enfim encontrara seu sopor.

Numa praia de sonhos, com um exército de si mesmo, velejador solitário que vence a solidão. Observo uma estrela cadente ao longe, como que querendo resgatar o brilho de meus olhos. 



segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Levando areia da praia



Areias ao vento. A longa orla o deixa atônito. O horizonte parece não ter fim, não sabe para onde olhar. A alguns metros dali as ondas quebram, farfalhando na madrugada de um céu sem estrelas.  Sente a areia em seus pés. Havia se esquecido de como essa sensação é libertadora.  Afunda os dedos, brincando num ritmo descompassado. As luzes da cidade seguem a curva da praia até a ilha Porchat ao fundo. A antena de um dos poucos prédios da ilhota ergue-se acima de tudo e todos, seu ponto de luz vermelho é a única estrela brilhante no céu.

Apenas alguns refletores da praia estão acesos. Estão numa penumbra, que se confunde com a imensidão do mar logo à frente. Ao longe um grande navio cargueiro desfila.  Fechando os olhos consegue imaginar o barulho da embarcação vencendo as águas, imponente. Para onde iria? China, Holanda, Angola? Os tripulantes de certo teriam uma longa jornada nos próximos dias. Ou seriam semanas, meses até? Pensa na solidão que teriam que enfrentar. O Atlântico como melhor amigo...

Aperta a mão dela firmemente. Pela primeira vez desde que desceram no carro dá-se conta que estavam de mãos dadas. Fascinado pela mudança de ambiente conseguiu abstrair tudo o mais que ocorria em volta. Agora, com medo da solidão das águas que se misturam com o negrume da noite, abraça-a. Estão juntos há 15 anos. Metade de suas vidas. Quando ainda eram adolescentes e não tinham filhos costumavam descer a serra todos os finais de semana. Era uma época incrível. Preocupações escassas, os brilhos em seus olhos eram mais fortes, a chama do amor era majestosa, inabalável. Porém a vida atingiu-os com a fugacidade de um relâmpago numa noite de dezembro. Solitário, mas que desencadeou uma tempestade. Ser pai tão jovem não estava em seus planos.

Logo começou a trabalhar em dois empregos, não poderia deixar seu filho passar qualquer necessidade. Era o seu compromisso. Casaram-se ainda naquele ano. A lua de mel foi a última viagem que fizeram juntos. Depois a rotina deixou-os presos para a vida sem o viver. O cinza predominou às verdejantes montanhas que admiravam da janela do Opala quando desciam a serra. Trem. Asfalto. Poluição. Casas tão juntas onde não há espaço para nenhuma.

São duas da manhã. Não há quase ninguém na praia. Próximo dali, encostados na parede do canal, um grupo de amigos se reúne em volta de uma fogueira. Bebem diretamente das garrafas. As rápidas notas de um violão ecoam por alguns metros. São todos universitários. É final de junho, estão quase de férias, faltando apenas conferir algumas notas e arrumar as malas para voltarem para suas respectivas cidades. Não há preocupações. A música é leve, todos ajudam a cantar. Quase não conversam, apenas aproveitando a melodia.

O violeiro se cansa da função que estava exercendo. Um silêncio atinge o grupo, no entanto não consegue perdurar por mais que alguns segundos, sendo logo substituído por risadas aéreas, leves. São formadas duas ou três conversas diferentes. Assim permanecem por certo tempo. Carlos não participa de nenhuma delas. Gentilmente começa a brincar com o violão. Passa a cantar algumas músicas conhecidas em voz baixa, dedilhando nas cordas.   Depois de algumas faixas sua namorada o acompanha. Aos poucos o coro ganha adesão de todos. Ele vai mudando o estilo das músicas, até chegar numa que todos gostam, mas ninguém sabe o nome.
Uma mistura de Reggae e Indie que deixa o corpo mais leve e faz sentir melhor a areia nos pés.
-- De quem é mesmo essa música, Carlos? É muito boa. Pergunta um dos amigos ao final.
-- É minha.
-- Sua? Muitos ali também se mostram surpresos.
-- Sim, eu fiz semana passada.

Carlos tem 21 anos. Toca desde os 8. Estuda Psicologia. Já gravou dois discos numa pequena gravadora. Na sua cidade do interior duas de suas músicas foram para uma rádio local e foram pedidas mais vezes, porém não emplacaram. Dentro de duas semanas aquele som que acabara de tocar estaria também na mesma rádio, porém será pedida muitas vezes. Ele realizará seu sonho mais antigo.

Prossegue com as suas composições, já que estava tendo boa aceitação do público.

Alguns passos dali Marcelo, ainda de mãos dadas, perde no horizonte o cargueiro que estava acompanhando navegar. Desapareceu na noite. Resolve olhar para o outro lado. As flamas bruxuleantes da pequena fogueira se destacam. Ele ouve algumas notas do instrumento perdidas ao vento. Aos poucos vai se aproximando do grupo de amigos. Sua esposa não gosta muito da ideia, já está tarde e o cansaço a invade. Conseguiram deixar as crianças com os avós e, em uma pequena loucura repentina, fugiram do restaurante japonês, onde comemoravam o aniversário de casamento. Foram direto para a praia, as saudades daquela época onde podiam ouvir música juntos, cabeça no ombro, infinito azul à frente, bateram de um jeito incontornável. As barreiras se romperam e, afinal, não era tão distante. Ficou a sensação de que deveriam ter feito isso antes.

Mas ela estava fatigada, trabalhara durante a manhã inteira e depois arrumou a casa. Queria ir embora.

Cada vez mais próximo o casal começou a ser notado pelo grupo de amigos. As vidas começaram a se colidir na aleatoriedade completa do mundo. Eles estavam vestidos para um encontro num bom restaurante, já os amigos todos à vontade, sentindo a praia. Era evidente o choque de diferenças entre os grupos.

Em seu íntimo queria sentar na areia, curtir o som do violão e conversar com aquelas pessoas novas. Tinha vergonha de incomodar e precisavam voltar para Santo André ainda naquele dia.
A esposa puxava-o. Era realmente hora de partir.

Então um dos amigos falou para que sentassem mais próximos do som, que não tinha problema algum.
Algumas insistências depois ele sentou. Já ela não queria sentar na areia, iria se sujar.

Marcelo ficou bastante impressionado quando descobriu que as músicas eram do jovem rapaz de longos cabelos. Ele sempre quis aprender violão. Quando criança tinha uma alegria enorme em visitar os tios, pois sua tia sabia tocar com perfeição. Ela o ensinou o básico e o menino aprendia rápido, formando logo acordes. Nas horas vagas ele escrevia alguns versos, imaginando a melodia que poderiam ter. Porém sem a prática não conseguia dar prosseguimento e, quando se encontravam novamente, somente no ano seguinte, poucos eram os avanços. Depois da morte dela ele nunca mais tocara num instrumento como aquele.

A memória aquece seu coração.

A musicalidade nunca o deixou. Aos domingos reúne alguns amigos na laje e ensaia alguns tons no pandeiro. Mas não era a mesma coisa. Sentia que algo lhe faltava. Amava por demais a esposa e os filhos. O trabalho também não era de todo mal. Seus colegas na oficina eram todos muito unidos. Contudo ainda faltava-lhe algo verdadeiramente seu. Continuou a lembrar de quando era pequeno, da verdadeira paixão que nutria pela música.

A vida levou a ocultá-la.
Ela, bravia, adormece, é coberta, deixada de lado. Não morre. Reacende com fagulha que tarda a acontecer, mas acontece. Em nosso íntimo não podemos ocultar por muito tempo aquilo que nos faz nós mesmos. E o astro rei, até depois da mais violenta tempestade, volta a brilhar e iluminar a alvorada de um horizonte desconhecido.

Ele lança um olhar fixo a Carlos. Sorriem.
Sua esposa por fim senta, tira o chinelo e põe os pés na areia. Seu coração acelera, também se esquecera da liberdade. Põe a cabeça no ombro do marido e fecha os olhos, com a música entrando em seu coração.


quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Catarse


Pouparei o leitor de extenso prólogo, sintetizando nossa introdução.

Uma família. Quatro pessoas. Um deles será nosso personagem. Nunca haviam visto um eclipse, solar ou lunar. Nunca propriamente viveram. Caberá ao interlocutor decidir o porquê de nunca terem visto o curioso fenômeno celeste. Pois na verdade não só jamais o observaram como também não sabiam de sua existência ou significado.  Falta de sorte. Falta de condições, oportunidades. Pobreza. Compromissos acumulados. Impossibilidade de ver o mundo como ele é. Adventos climáticos. Tanto faz. Também ficará ao seu critério decidir a época dos fatos a seguir relatados, tendo em vista que são atemporais.
                
          Sabe-se, no entanto, que um eclipse solar total tem a duração de aproximadamente sete minutos e quarenta segundos, levando trezentos e sessenta anos para se repetir num mesmo ponto do globo terrestre.
                
                 O sol estava escaldante. Queimava-lhe a pele sem nenhuma cerimônia. As valentes brasas atingiam seu corpo inteiro. Mesmo moreno ganhava tons de vermelho onde a exposição era mais constante. Seu pai também fora castigado desde cedo pelo calor invencível. Nele os efeitos do tempo já estavam por inteiro arremessados. Seu futuro, portanto, havia sido traçado antes do nascimento. Assim fora durante gerações, sem que se saiba quem tenha sido o primeiro a ficar com as mãos cheias de cicatrizes e a pele enrijecida. Nosso personagem não terá nome, por apenas ser mais um elemento da linha sucessória abrasante.
                
                 Na aurora ou crepúsculo apenas enxergava no horizonte a rotina impondo-lhe o mesmo ritmo, trabalhar para o viver e viver para trabalhar. A lavoura, como subsistência, não era somente labor. Era a maior responsabilidade que poderia ter. A vida de outros dependia dele. A árida região exigia certos cuidados extremos com a terra, conhecimentos que chegaram através de décadas e fatalidades em seu percurso.
                
            O cabo de madeira tosca machucava suas mãos em crescimento, não sentia dor. A habitualidade leva a inacreditáveis capacidades. Os sádicos raios ricocheteavam na terra e voltam em cheio para si. Queria tomar água, mas o poço mais próximo exigia ao menos vinte minutos de caminhada. Não tinha por hábito levar consigo alguma reserva especial para o dia, apenas acostumava-se sem o líquido. Desta vez, contudo, sentia realmente vontade de beber algo. Por um momento sentiu-se derrotado por sucumbir ao desejo. Então lhe acometeu que talvez aquilo fosse realmente necessário.
                
                      Encostou a enxada no cotovelo, apoiando-se para ganhar alguns segundos de descanso. Olhou o horizonte e o sol austero. Percebeu em seu brilho algo de diferente. Nada poderia ser diferente. Sua vida apenas seguiria o ritmo imposto. Voltou a trabalhar, tentado concentrar-se. Sua mente estava em conflito. A rebeldia da juventude parecia ganhar a batalha com toda a responsabilidade que acumulara ao longo de anos de trabalho. Lembrou-se de quando tomou um banho de chuva com sua família. Estavam todos assustados no casebre, o vento era forte e podia levar consigo os telhados da vizinhança. Ele e a irmã escondiam-se embaixo da cama, a mãe rezava na mesa da sala. O pai estava sem atitudes, apenas olhando a pequena janela esperando pelo melhor. Então o sol despontou nas nuvens, num belo espetáculo colidindo com as fortes gotas da chuva. Falou para tirarem suas roupas de cima de e correrem ao quintal. De início ninguém acreditou naquilo, então ele correu para o meio da tempestade. Todos o seguiram. Todos riram e lavaram a alma.
                Aquela lembrança o fez sorrir. Fazia tanto tempo... Não recordava de outro momento em que todos encontraram tal felicidade simultânea.

Não queria mais o sol opressor. Queria viver mais momentos como aquele.

Não resistiu à curiosidade e novamente observou o corpo celeste. Desta vez teve certeza absoluta de que algo estava alterado. Um pouco do brilho começava a esvair-se. O que era aquilo?
De olhos semicerrados, ainda torturados pelo fulgor intenso, não conseguia parar de mirar o astro rei. A sombra da incerteza parecia aumentar a cada segundo, num ritmo tão lento que lhe causava certa inquietude.

Confuso, nada parece fazer sentido.

O ponto de luz cresce e já cobre metade da bola de fogo. Deixa-o perplexo. Sente-se culpado, pois era tudo obra de seu desejo. O seu entorno ganhava ares de anoitecer. O porvir causava medo.

Com menos intensidade os olhos passam a doer menos. Agora grande parte já é escuridão. Uma última linha esperançosa de luz alcança o sol, como uma estrela longa e muito intensa. É o fiapo restante de sua vida anterior, a ligação que tem com o mundo. Aquela estrela padecendo representa tudo o que vivera até aqui. A linha persiste. O espetáculo é maravilhoso. Pela primeira vez toma conta disso.

Senta-se, mesmo nunca descansando no trabalho.

Uma lágrima fica presa em seus cílios. Era a coisa mais bonita que já havia visto. A fina linha de luz ilumina com seu brilho alaranjado todo o horizonte, num misto de crepúsculo e penumbra. A paisagem é incrível. Ao longe as montanhas verdejantes a perder de vista ganham na meia-luz do fenômeno uma igualdade, tornando-as linhas de um mesmo tracejado. Um rio serpenteia por entre elas e suas águas refletem todo o espetáculo.

Mesmo laborando ali todos os dias não tem o hábito de admirar a paisagem. Agora, no entanto, parece ultrajante que nunca tenha feito isso. Não quer mais voltar ao que era. Nunca mais vai. Pela primeira vez sente-se vivo e parte de tudo aquilo, apesar de ser tão diminuto diante da imensidão do que estava acontecendo. O momento parece durar uma eternidade.

Só então a linha de luz vai diminuindo, tornando-se apenas um ponto muito brilhante. Num instante todo o sol está tomado pela escuridão. Algo lhe esconde, uma incrível esfera negra está na sua frente. Todo o esforço do invencível corpo celeste é em vão. A sombra o domina por completo. Atrás dela há uma luz bruxuleante do que restou do sol, mas é fraca, um insulto a toda força que ele tem.

Ainda sentado sabe que o momento é crucial. A catártica sensação agora precisa encarar seu futuro. O que vai acontecer?

Queria permanecer assim, mas tem medo. Agora será aquela a realidade estabelecida, tendo ele de se acostumar com seus profundos desejos realizados e a sombra da incerteza?  Ou então a luz voltará, vencendo a sombra pouco a pouco e impondo seu ritmo implacável, voltando tudo ao que era antes?

E nessa fase incrível, de contradições finadas, abrasadas, não quer levantar.



domingo, 30 de agosto de 2015

Sinestesia

As luzes mais bonitas da cidade eram as da ponte suspensa. Longas, quentes, em perfeitas fileiras. Tremeluziam na negritude do rio sem movimento. Ligavam esperançosamente um lado ao outro do oceano de prédios. Mas eu não contava com a esperança em minha vida. Precisava de alguma ponte para sustentar-me.
Foi então que eu vi, e lembrei-me em segundos de anos deixados para trás.

Eu estava na varanda de nossa chácara. Meus irmãos e meu pai tinham ido pescar. Não pude ir. Era pequeno, falava demais, não conseguia ficar quieto. Espantava os peixes.        
Então peguei um livro para ler. Cheirava mofo. Pertencia a uma famosa coleção, roubado da estante do quarto de meus pais. Ninguém nunca saberia, era um crime perfeito. Peguei para desafia-los, mas na verdade ele começou a me interessar profundamente. Alguma magnitude única prendeu-me e eu todas as noites na varanda o lia, com metade da visão mirando as estrelas e a outra metade cedendo àquelas palavras tão inéditas.
E pela primeira vez meus olhos foram seduzidos.

Era o farfalhar típico das noites de verão. O rugido do vento fazia tremer os galhos e obrigava as cigarras a cantar. Eram milhares de sons escondidos na escuridão. A chácara não tinha vizinhos. Nós éramos a minoria ali.
Uma luz verde despontou. Deixei o livro de lado e passei a procurar a fonte de luz oscilante. Para onde fora?
Piscou a alguns metros dali, instantes depois. Poderia ela voar? 

Uma luz que voa. Eu estava confuso.

Com o livro de lado, caminhava sem rumo pelo jardim.
O ponto verde acendeu novamente. Estava em alguma árvore. Definitivamente voava. Então a verdade me veio de pronto: um inseto que tem uma lanterna.
E passou a ser meu inseto preferido.
Por todas as demais noites não me importei com a falta de pescaria. Queria eu confirmar o meu segredo mais oculto.
Mas não eram fáceis de encontrar. 

            Continuei a ler e a mirar as estrelas. Minha mãe só me permitia ficar acordado até às onze horas. Eu esperava o silêncio reinar na casa para desvencilhar-me das cobertas carinhosamente postas e pular a janela. Caminhava até a varanda, acompanhado sempre de um fiel livro. O banco me esperava e passaríamos a noite inteira juntos.

E assim foi provavelmente o mais belo segredo de minha infância. Ninguém nunca soube. A cada vez que avistava esse pequenino fulgor esverdeado tudo valia a pena. Era a tradução da inquietude do mundo: nunca poderia entendê-lo, restava apenas apreciar. Sim, pois a criança não entende o vaga-lume. Não entende também as guerras, a corrupção e o preconceito. Resta-lhe somente formar suas próprias teorias sobre os fenômenos mundanos. E, para os vaga-lumes, eu tinha a minha singular transcrição. Eram estrelas que voavam muito próximas de nós. Animais que me visitavam para mostrar que afinal as estrelas não eram tão distantes.

Uma vez ouvi um amigo dizer que, brincando pela mata com seu primo, avistou um de meus preciosos astros. Capturou-o e o colocou num pote de vidro. Achei um absurdo. A liberdade lhes pertencia.       
Obriguei, fora de meus ânimos, a devolver a minha estrela à natureza.

Os vaga-lumes eram meus, ninguém poderia lhes fazer mal.
Então eu cresci.

Com a adolescência veio também a rebeldia e a rejeição a tudo. Não íamos mais à chácara com tanta frequência. Aos poucos, as luzes esverdeadas foram se apagando de minha vida.

Lembro que, quando primeiro as vi, jurei para sempre protegê-las. Talvez por isso tenha entrado na faculdade de Direito sonhando ser um advogado ambiental.

Mantive esse sonho aceso durante todos os cinco anos. Era definitivamente algo mais forte do que eu. Lutava contra as grandes corporações, protestava em favor do meio ambiente. Consegui um estágio numa famosa ONG internacional. Eu era feliz nos tempos de faculdade.             

            A chácara foi vendida, fazia anos que não íamos para lá. Talvez tenha sido melhor assim. Tudo estava abandonado nas memórias de uma criança.

Depois de formado enfrentei outra realidade. Ser um advogado ideológico não sustentava a mulher e filho que tinha para criar. Corri atrás do primeiro emprego que me apareceu. Rapidamente fui ganhando reconhecimento na empresa. Passei a dar risada das piadas que meus colegas contavam. Aos poucos minha ideologia foi morrendo.

Então chegamos à noite de hoje. Nunca me senti tão sozinho. É a festa de fim de ano da empresa. Todos os setores juntos. O jurídico inteiro está aqui bebendo e se divertindo. Mas eu, de alguma forma, não consigo aceitar. Subi para o terraço, a vista é linda daqui.
No horizonte eu vi.
Uma luz verde. Pensei que estivesse delirando. Eles não estavam extintos? O futuro não é bom. O futuro é cinza. Pensei que eles haviam ido embora para sempre.
Mas a minha estrela voltou. Piscou a alguns metros dali.

 Dizem que a verdadeira felicidade é viver em paz para amar. Desci pelas escadas até o térreo. 
A ponte estava construída.