Esta é a primeira vez que escrevo
em 2020. A primeira vez desde que tudo ocorreu, que as certezas antes pairantes
em sonhos concretizados sucumbiu a uma realidade fria e escondida. Será também
a primeira carta que te escrevo assim, em primeira pessoa, tentando deixar a
ficção de lado e trazer os sentimentos da maneira mais direta possível, ainda
que por entre eles exista sempre o caminho da literatura e do buscar das
palavras. Talvez esta carta nunca chegue para ti, ou talvez seja também a
última. Começarei confessando-te que a escrita é um vício absoluto. A relação
das linhas com dedos tremulantes é feito o pó e o sistema nervoso. Quando sob
seu efeito, tudo parece fazer sentido e sinto-me poderoso pelo seu estímulo. De
tanto escrever, já confundo o meu eu dos rabiscos e aquele do espelho. Não
somos dois, mas sim a fusão complexa num elixir egoísta. Talvez seja por isso
que passo tanto tempo sem o olhar da página em branco, seca, a julgar. Temo
encontrar-me somente nela, para somente a ela confessar os mais profundos
segredos de uma existência trivial. Paradoxalmente, é a melhor ouvinte que já
encontrei. Todas as respostas escancaram-se num lapso de puro prazer e dor
total. As ideias de como aproveitar a droga pipocam a todo o momento,
entregando a possibilidade de uma distopia feliz e assustadora. Procrastinar
esse prazer não vem somente da apatia de dias vazios sem sentido. É controlar a
dose para tentar apegar-se ao mundo das coisas e da realidade, ainda que tudo
pareça distante. Um mito da caverna ao contrário, onde a luz pode cegar de
forma permanente para nunca mais ver o céu da mesma forma.
Por muito tempo eu temia jamais
encontrar o deslinde de meu destino, pois este era a raiz da minha inspiração
primeira. Temia ser acompanhado para sempre apenas do julgar destas páginas,
num surto solitário de autoconhecimento em vão. Em todas as vezes que ousei
fundir as minhas existências, a do vício e a real, escrevendo para destinatário
certo, obtive nada além do sofrimento em sua essência. Não busco
reconhecimento, apenas compreensão e cumplicidade ao mesmo nível do vício
maldito. Sonhei tantas vezes com essa possibilidade que parece, outra vez, que
a esperança diluía-se no meu eu viciado, onde somente ele podia criar suas
fantasias e viver como se realidade fosse. Até deparar-me com seus olhos
verdes, num encontro casual. Ao vê-los, a chama dos meus eus brilhou a ponto de
transbordar, mas não de cegar. Por alguma razão eu sabia que tudo começaria
outra vez, que entregaria novamente aquela fusão perigosa, arriscando machucar
ainda outra vez. Só que, de forma inédita, foi a certeza absoluta que pairou
desde o início. De que a história apenas começava e que muito compartilhamento
viria.
Nesses dias tão tristes e vazios,
nas conversas pesadas que tivemos, ouvi de sua boca já tão familiar a indagação
de se o amor vinha do ser amado, do reconhecimento e da correspondência. Se não
era, então, individualista e mesquinho. Creio que pela divagação anterior
talvez tu já tenhas a resposta, de que não, ele advém é do mais puro
compartilhamento, transborde e confiança. A correspondência apenas sustenta o
que já existe, enquanto, no nosso caso, flores brotavam dos cantos mais remotos
dos nossos eus. O medo do vício passou a ser secundário, pois a realidade estava
presente. A liberdade sonhada brilhava para dar razão a todos os desejos
acumulados, como se, de alguma forma, ela estivesse sempre ali, a espreita para
mostrar-me o outro lado da vida. E isso não viria com qualquer uma. Digo isso
pois a energia que emana de nossos corpos é vital e em pura sintonia. Contudo,
ainda a mais resistente das plantas pode adoecer e, eventualmente, morrer. Caso
fosse amor do mundo das ideias, ele seria completo antes da própria realização,
a existir independente das vontades. Perfeito na essência, como por tantas
vezes criei. O nosso, muito mais complexo, demandava experiências e cuidado que
nunca tive. Não exatamente por falta de vontade e jamais por não confiar no
nosso amor. Não. Apenas e simplesmente por que, aquele que muito escreve sobre
a teoria do amor perfeito nem sempre tem todas as respostas da prática. O vício
as carrega num ímpeto violento e revela nada além do que, em meu âmago, já é
conhecido. A realidade, por sua vez, traz desafios onde o erro é certeiro e
único professor. E como erramos. Talvez a sabedoria seja desacreditar na
completude das próprias existências e curvar-se a esses ensinamentos, sabendo
que, sem escutá-los, volvemos ao vício do criar solitário. A dificuldade do
perdoar é justamente assumir que a realidade é dura e viver dos próprios vícios
é prazeroso e até suficiente, mas facilmente enganoso. Como havia dito, a luz
dessas ideias é tão forte que pode cegar. Ao final, somos apenas a poeira que
ainda desce.