quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Carta



Esta é a primeira vez que escrevo em 2020. A primeira vez desde que tudo ocorreu, que as certezas antes pairantes em sonhos concretizados sucumbiu a uma realidade fria e escondida. Será também a primeira carta que te escrevo assim, em primeira pessoa, tentando deixar a ficção de lado e trazer os sentimentos da maneira mais direta possível, ainda que por entre eles exista sempre o caminho da literatura e do buscar das palavras. Talvez esta carta nunca chegue para ti, ou talvez seja também a última. Começarei confessando-te que a escrita é um vício absoluto. A relação das linhas com dedos tremulantes é feito o pó e o sistema nervoso. Quando sob seu efeito, tudo parece fazer sentido e sinto-me poderoso pelo seu estímulo. De tanto escrever, já confundo o meu eu dos rabiscos e aquele do espelho. Não somos dois, mas sim a fusão complexa num elixir egoísta. Talvez seja por isso que passo tanto tempo sem o olhar da página em branco, seca, a julgar. Temo encontrar-me somente nela, para somente a ela confessar os mais profundos segredos de uma existência trivial. Paradoxalmente, é a melhor ouvinte que já encontrei. Todas as respostas escancaram-se num lapso de puro prazer e dor total. As ideias de como aproveitar a droga pipocam a todo o momento, entregando a possibilidade de uma distopia feliz e assustadora. Procrastinar esse prazer não vem somente da apatia de dias vazios sem sentido. É controlar a dose para tentar apegar-se ao mundo das coisas e da realidade, ainda que tudo pareça distante. Um mito da caverna ao contrário, onde a luz pode cegar de forma permanente para nunca mais ver o céu da mesma forma.

Por muito tempo eu temia jamais encontrar o deslinde de meu destino, pois este era a raiz da minha inspiração primeira. Temia ser acompanhado para sempre apenas do julgar destas páginas, num surto solitário de autoconhecimento em vão. Em todas as vezes que ousei fundir as minhas existências, a do vício e a real, escrevendo para destinatário certo, obtive nada além do sofrimento em sua essência. Não busco reconhecimento, apenas compreensão e cumplicidade ao mesmo nível do vício maldito. Sonhei tantas vezes com essa possibilidade que parece, outra vez, que a esperança diluía-se no meu eu viciado, onde somente ele podia criar suas fantasias e viver como se realidade fosse. Até deparar-me com seus olhos verdes, num encontro casual. Ao vê-los, a chama dos meus eus brilhou a ponto de transbordar, mas não de cegar. Por alguma razão eu sabia que tudo começaria outra vez, que entregaria novamente aquela fusão perigosa, arriscando machucar ainda outra vez. Só que, de forma inédita, foi a certeza absoluta que pairou desde o início. De que a história apenas começava e que muito compartilhamento viria.

Nesses dias tão tristes e vazios, nas conversas pesadas que tivemos, ouvi de sua boca já tão familiar a indagação de se o amor vinha do ser amado, do reconhecimento e da correspondência. Se não era, então, individualista e mesquinho. Creio que pela divagação anterior talvez tu já tenhas a resposta, de que não, ele advém é do mais puro compartilhamento, transborde e confiança. A correspondência apenas sustenta o que já existe, enquanto, no nosso caso, flores brotavam dos cantos mais remotos dos nossos eus. O medo do vício passou a ser secundário, pois a realidade estava presente. A liberdade sonhada brilhava para dar razão a todos os desejos acumulados, como se, de alguma forma, ela estivesse sempre ali, a espreita para mostrar-me o outro lado da vida. E isso não viria com qualquer uma. Digo isso pois a energia que emana de nossos corpos é vital e em pura sintonia. Contudo, ainda a mais resistente das plantas pode adoecer e, eventualmente, morrer. Caso fosse amor do mundo das ideias, ele seria completo antes da própria realização, a existir independente das vontades. Perfeito na essência, como por tantas vezes criei. O nosso, muito mais complexo, demandava experiências e cuidado que nunca tive. Não exatamente por falta de vontade e jamais por não confiar no nosso amor. Não. Apenas e simplesmente por que, aquele que muito escreve sobre a teoria do amor perfeito nem sempre tem todas as respostas da prática. O vício as carrega num ímpeto violento e revela nada além do que, em meu âmago, já é conhecido. A realidade, por sua vez, traz desafios onde o erro é certeiro e único professor. E como erramos. Talvez a sabedoria seja desacreditar na completude das próprias existências e curvar-se a esses ensinamentos, sabendo que, sem escutá-los, volvemos ao vício do criar solitário. A dificuldade do perdoar é justamente assumir que a realidade é dura e viver dos próprios vícios é prazeroso e até suficiente, mas facilmente enganoso. Como havia dito, a luz dessas ideias é tão forte que pode cegar. Ao final, somos apenas a poeira que ainda desce.




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