A cueca
Doutor
Ernesto era um tipaço. Faz tempo que não vejo o sujeito. Dizia que quando se
aposentasse ia mudar pro interior plantar tomates. Deve ter mudado mesmo. E
como gostava de tomate! O maluco punha tomate até no que já tinha tomate. Suco?
Só de tomate, claro! Mas tinha uma razão para isso. Ele era cirurgião. Não
lembro de quê agora, acho que do coração. Isso mesmo, do coração! E dizia que
se todo mundo comesse tanto tomate assim ele teria é metade do serviço na mesa
de cirurgia. Eu, que achei melhor não contrariar o doutor, passei a comer muito
mais tomate. E até agora tô vivo! Mas enfim, além de gostar de tomates e ser cirurgião
ele era também japonês. Bem japa mesmo, o pai e a mãe dele tinham vindo do
Japão direto pra Santos. Só nunca descobri por que chamava Ernesto, vai saber. Ele
falava fluentemente o idioma e era todo apegado às tradições de lá. E ô cara
metódico. Juro. Bem estereótipo de japonês mesmo, fazia tudo certinho. Colocava
lixo no bolso para não jogar nem na rua nem na lixeira. Era o lixo dele, dizia,
ele que tinha que cuidar. Dava seta no carro mesmo que fosse três da manhã numa
rua escura da Brasilândia. Nunca começava uma frase sem bom dia ou por favor.
Falava baixinho, sabe? Como se tivesse é pedindo desculpas por falar. E tinha
horário pra tudo o doutor. Acordava todos os dias às 06:30 da manhã, mesmo que
fosse feriado ou sei lá, tivesse caindo o mundo. Tomava um copo de suco(de
tomate) e ia correr pro Ibirapuera. Dava duas voltas, pegava o carro e, em dia
da semana já ia pro hospital direto. Tomava banho lá e só saía às sete da
noite. Passava na padaria e voltava pra casa. Dava pra acertar o relógio vendo
o doutor passar, sério. Mesmo com trânsito o danado nunca atrasava pra nada.
Usava sempre uma camisa de cor clara, uma calça social caqui e sapatos marrons.
Quando batia um vento ele vinha com um coletinho, nada muito pesado.
Nos conhecemos aqui no bar
mesmo. Sim, ele vinha pra cá. Tomava dois chopes. Um no primeiro tempo e outro
no segundo. Nunca a mais, nunca a menos. É que eu esqueci de falar o mais
importante. Além de gostar de tomates, ser cirurgião e japonês, o doutor era
corintiano. E não era pouco não, desses que só vêm pra ver libertadores. Ele
vinha era pra ver até a copinha. Mas quem visse ele aqui não imaginava que era
cirurgião, todo comportado, todo educado não. Da porta pra dentro do bar o japa
virava quase um holligan. Falava palavrão pra caralho, se deixasse xingava até
o mascote, juro. E como vibrava com um gol então. Era daqueles sujeitos que o
jogo fica até melhor sentando do lado, abraçava todo mundo, berrava de estourar
as cordas e se o timão metia mais de cinco pagava até umas rodadas pra
galera(pra ele não, eram só dois mesmo). Fui conhecendo o doutor e ficava
impressionado com a mudança do cara. Começamos a ir pro Pacaembu juntos. No
primeiro dia que fomos ele passou em casa e eu jurava que ele ia botar uma
camisa do Coringão né, mas que nada. Era camisa, calça caqui e sapatos marrons.
Ele pegava fila certinho e acho que era a única criatura do estádio que sentava
no lugar marcado. Mas juiz apitou, pronto, já sabe.
Até que chegou o grande dia, o
mais esperado da vida de qualquer corintiano. A grande final da liberta de 2012.
Corinthians e Boca, as torcidas mais apaixonadas das Américas. Romarinho tinha
metido um lá na Bombonera, encobrindo o goleiro. Agora era só ganhar em casa.
Só não né, tava todo mundo quase tendo um ataque do coração dois dias antes do
jogo, sem dormir nada, sabe como é. Se o timão perdesse o doutor ia operar
metade do estádio.
Fomos juntos e ele encasquetava
que tinha que chegar duas horas antes. E nada de comer espetinho ou tomar breja
na porta do estádio não, tinha que entrar duas horas antes. Eu perguntava o
porquê. Ele gostava de sentir a vibração do estádio, dizia. A gente tava quase
chegando no Pacaembu quando o doutor ficou todo branco. Pensei que era do jogo
né, aquilo lá tava mexendo com qualquer um. Mas não. Ele falou que a gente ia é
precisar voltar pra zona norte. Eu pensei que ele tava ficando maluco,
correr o risco de perder o jogo, imagina! Mas não mesmo! Ele insistiu, disse
que precisava voltar de qualquer jeito, tava quase chorando o doutor. E sem
explicar o porquê. Tudo bem pensei, a gente ia é ver o Corinthians ser campeão
juntos. Ele voltou bem rapidinho no Corolla dele(mas continuou dando seta).
Entrei na casa, toda arrumadinha e ele disse que só ia trocar a cueca. Que sem
a cueca da sorte o timão não ia ganhar não.
Trocou e voltamos. O timão
ganhou, foi campeão e ele até tomou três chopes aquele dia. Era a cueca.
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