quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Metáforas que voam



                Os doces ares joviais de minha infância eram sempre acompanhados por muitas perguntas. O mundo me fora dado de presente, mas dele teria de desbravar os seus segredos, minúcias e caminhos. Importunava meus pais com centenas de questões, mas que eram ínfimas se comparadas com a batalha interna que ocorria dentro de mim. Parentes sempre se indignavam com a minha quietude, mas a verdade é que mal podiam imaginar o caos e o falatório que ocorriam em minha mente. Nada passava despercebido, mas por muitas vezes as respostas não vinham.
                Um dos maiores mistérios insolúveis de que me recordo eram os aviões, que rasgavam o límpido céu do interior. Como é que, mesmo tão grandes, não se perdiam na imensidão das alturas? E, como que tão grandes, eram mais leves que o ar que eu respirava?
Observando os alegres pássaros em meu quintal, para não dizer dos pequeninos risonhos beija-flores, aprendi que o voar era sutil, uma suavidade feito o mais fino dos tecidos de seda. Era também natural, como o andar de minhas pernas e as conexões de meus pensamentos. Como que aeronaves ousavam burlar esta regra?
                Ainda mais apreensivo fiquei quando por fim voaria em uma daquelas máquinas pela primeira vez. Beirava meus 7 anos e ainda não havia entendido nada sobre aquilo. Antes da promissora viagem fomos ao aeroporto duas vezes, para que eu e meu irmão nos acostumássemos àquela rota incomum. Um milhão de vultos tumultuados e apreensivos passavam por nós. Eram passageiros prestes a cruzar o globo, em mil diferentes rotas. Qual seria o destino de cada um? De tão apressados, não conseguiam enxergar o espetáculo que eu presenciava. Na janela de um café, os aviões dançavam com programados passos naquela enorme pista.  Como ninguém parava para observar? Era fascinante, mas nada me tirava da cabeça de que tudo era artificial. Ora, os beija-flores precisavam de tantos movimentos para levantar voo? É claro que não. Tive de me consolar e convencer que só entenderia o mecanismo de tudo quando finalmente eu estivesse dentro de um deles, rumo às desconhecidas nuvens.
                Angustiosas noites de espera antecederam a viagem. Eu mal podia conter a euforia. Não se tratava de uma viagem comum. Eu iria voar e então tudo faria sentido, mesmo as mais insolúveis dúvidas. Os procedimentos a bordo me pareceram engraçados. Os gestos dos comissários pareciam uma bizarra dança robótica em câmera lenta. Os assentos espremidos não se diferenciavam muito de um ônibus, mas as pessoas agiam de forma completamente diferente. Todos inquietos, com a necessidade de se entreterem ora com o jornal do dia, ora com a revista da companhia. Era uma atmosfera diferenciada, mais pungente.
                Depois de eternas manobras, a geringonça parou na pista. Pela mais pura intuição sabia que aquele momento antecedia uma aceleração. Eu só não imaginava que seria tão brusca! Era feito uma montanha russa numa curva logo depois da principal descida. Incontrolável! E, como num passe de pura mágica, em segundos estávamos subindo. Era natural, enfim! As casas iam ficando menores, as nuvens mais densas e enfim a imensidão azul. Acima de todos. Então era assim que se voava!
                Para que a paisagem ficasse repetitiva demorou-se muito. Quando me extasiei com a incrível vista, resolvi mudar de ares para às páginas de um livro que trouxera comigo. Meus olhos, que estavam se habituando com as nobres letras, pararam em um dos conjuntos que elas formavam. Indaguei:
- Pai, o quê é uma “metáfora”?
Desprendendo-se de sua também leitura, ele me respondera com o mais natural dos ares:
- Metáfora é quando você faz uma comparação, mas não usa o “como”.
-Como assim?
Eu penava para entender como era possível se comparar sem que se comparasse. Meu pai então, pacientemente, largou o livro, abaixou os óculos e olhou para mim e para a diminuta janela oval da aeronave.
- Metáfora é o avião em que nós estamos. Isto aqui é pesado, com centenas de toneladas, mas mesmo assim voa, não é? Ninguém sabe ao certo, mas a suavidade com que realiza é inegável. Podemos até não entender, mas não discordar. Além de tudo é muito seguro. Agora olhe para essa fina janela ao seu lado. Ela separa o caos do conforto, o mais gélido dos ares da fina brisa aqui de dentro. Lá fora, não há vida, por ser muito alto. O menor dos furos nesta janela acarretaria uma queda brusca de pressão, pondo em perigo a vida de todos aqui. Acontece que isto aqui é planejado para não haver erros e para voar com uma falsa suavidade.  É o jeito de o humano imitar a natureza, com a sua eterna ambição e com conhecimentos gerados ao longo de séculos. Como nunca teremos asas, alguém um dia criou-as artificialmente. Mas você entende que elas jamais serão tão perfeitas como as de um gavião? Você nunca vai ver um acidente, em que uma das asas do corajoso gavião falhou. Agora, nesta máquina aqui, apesar de ser extremamente raro, pode vir a ocorrer. Nenhuma imitação jamais será perfeita, mas poderá se chegar tão próximo que o mais atento dos olhos talvez não perceba. O avião, filho, é nada mais do que uma metáfora do voar.


Nunca mais esquecera este dia.  Não apenas entendera a desconhecida palavra, mas também a importuna pergunta, sombra que me perseguia.


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