quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Violência

                Nasceu em meio à violência. Se ao mundo viesse com plenas capacidades, poderia ter entendido as primeiras palavras de seu pai, ao vê-lo no leito do hospital. O esperado sorriso fora substituído por um duro discurso.  Sua mãe chorava de tristeza, ao ver os sonhos de uma família feliz saírem pela porta da maternidade. As lágrimas que acompanharam seu nascimento foram de melancolia e desolação. Na primeira semana, sua mãe pensara seriamente em se desfazer daquele fardo que havia se tornado o bebê com triste sina pelo futuro. Por amor, não o fez.
                Solitária, desolada e com as condições de pobreza ainda mais agravadas, Virgínia transferia sua carga de revolta ao filho. Ele crescera em meio à violência, sob tapas e olhares de pura reprovação. Na escola pública, só enxergava violência. A polícia estava sempre presente, os conflitos eram comuns e os professores não raras vezes deixavam a paciência de lado. Sentia que era diferente dos colegas, pois seus gostos se opunham.
                De tanto buscar, um refúgio àquela vida achou. Veio em dupla. Gostava de ler e olhar as curvas das inúmeras montanhas cariocas, que eram tocadas pelo mar com uma maestria singular no globo. Quando o tempo e o dinheiro permitiam, descia o morro e na praia seus problemas morriam. Encontrava a paz no murmúrio das ondas, com os atentos olhos percorrendo diversas narrações. Ali, na areia sob o forte sol do Rio de Janeiro, sentia-se igual a todos. A sua vida não mais era difícil. Contudo, a violência era persistente, não desistia de segui-lo. Os colegas não entendiam seu gosto pela leitura, poucos amigos tinha. Os professores, já tão desmotivados, generalizavam a classe, falando que ali não haveria um só que se salvasse. Roberto, acanhado, não ousava discordar. Apenas aceitava. 
                Conforme crescia, percebia que suas idas à praia também eram cercadas de violência. Na zona sul, era um alienígena. Calhou que veio ao mundo negro e só percebera o racismo escancarado anos mais tarde. Mudavam de calçada ao ver o rapazinho tão maltrapilho e mirrado. Era melhor prevenir.
A polícia cumpria sua obrigação, sempre indagando a razão do passeio. Algumas vezes a pergunta era sucedida por uma agressão, já que os motivos não satisfaziam os guardas.
                Com 14 anos sua mãe obrigou-o a trabalhar. Numa mercearia, o patrão acumulava diversos problemas familiares. A vida do pobre velho em nada dera certo e a pequena lojinha era seu tesouro particular, sendo sempre muito violento com seus empregados. Não raros eram os gritos, palavras horríveis que recebiam os funcionários, seguidos sempre por uma exploração nas horas trabalhadas e no salário do começo do mês. Roberto não controlava seu dinheiro, que servia para sustentar os vícios de sua mãe.
                Já maior, estudava para tentar conseguir uma disputada vaga na faculdade quando o pouco que tinha ruiu.
                
               Estava no meio dos protestos, agregando-se aos milhões que ocupavam as ruas e reivindicavam uma extensa lista de coisas. Sentiu-se hipnotizado pelo gesto de alguns poucos ali. Abaixou, pegou uma pedra e analisou-a cuidadosamente. Sob uma avalanche de pensamentos, decidira se juntar aos demais e tacou-a em uma das vidraças da Câmara Municipal. Gritaria, pessoas em pânico, muita gente correndo. Seus olhos doíam. Caíra no chão, a fumaça era densa. Ouviu os tiros, que, de borracha ou não, amedrontaram cada nervo do seu corpo. Levantou-se muito confuso, onde estavam todos? Uma dor cortante, pungente, afetava o seu pescoço. Um dos guardas o pegara. Não conseguia respirar, a dor era tão palpável e intensa que pensara estar cruzando fronteiras entre mundos. Enfim o alívio. Fora solto, mas agora prendiam seus finos punhos com algemas. O barulho estridente das sirenes queimou seus neurônios a caminho da delegacia. Havia muita gente da imprensa, que o classificava como mais um dos vândalos. Alguns já o consideravam como um temido black block que era visto com frequência no Arpoador.  Jogado com violência numa pequena e fétida cela, não mais entendera nada.
Hoje, convive com a violência em um presídio.  Afinal, fez por merecer.

Sente saudades do mar. As ondas, calmas ou bravias, jamais ousavam lhe ferir.

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