quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Marés da vida

Marés da vida

“O que quero da vida vai ser sempre um sonho distante” (Li Cunxin)
                Julho, 1954. Nas águas do pacífico.
                Foram anos de muito esforço para se chegar a um sonho tão almejado. Lembro-me do dia em que fizemos a promessa, braços colados, olhando a delicada luz do pôr-do-sol tocar as verdejantes colinas da Toscana, devaneios dominando nossas mentes, com milhares de aspirações tomando forma na inocência de nossa juventude. Você estava grávida e teríamos a vida inteira pela frente. Nossos olhos marejados se encontravam a cada segundo, procurando respostas para o excitante futuro indecifrável. Na alvorada de nossa vida adulta fantasiamos sobre os mais diversos pontos, planejando o implanejável, desafiando a quimera do fatídico destino.
                Dentre tantos fracassos, um deles não sucumbiu. Neste inesquecível entardecer prometemos que, ao completar o esperado ciclo da vida e, aproximando-se de seu fim, viveríamos juntos a nossa última aventura. Desbravadores do mundo, aventureiros por natureza, sempre mantivemos a promessa acesa. Cruzaríamos o globo em um barco à vela, sem preocupações, horários, metas precisas ou qualquer aborrecimento. Ao longo de nossas vidas economizamos muito, tentando dar concretude ao tão distante sonho. Mesmo assim ele permanecia disforme, inatingível, mera utopia de mentes pueris. Vivemos felizes, mesmo com os esperados dramas intrínsecos à vida. Criamos nossa família e alicerçamos efetivamente nosso futuro que, de repente, virara presente. O tempo para executar tais planos chegara e agora o que faríamos? O presente virara dádiva e dela deveríamos desfrutar.
                Partimos. Deixando tudo para trás, tentando recuperar a inocência daqueles pensamentos ingênuos de nossa juventude. O ponto de partida era conhecido, mas o de chegada era um mistério mesmo em nosso íntimo. Os preparativos da viagem foram corridos, sem a devida cautela. Vivemos a nossa vida inteira na selva de pedra, excursões ao litoral não eram tão frequentes quanto desejávamos. Dito isso, tivemos pouquíssimo tempo para aprender, de fato, a velejar.
                Os primeiros meses da viagem foram excitantes. Em cada porto que atracávamos era uma nova aventura. Culturas tão distintas, separadas por águas ora bravias, ora serenas. Nunca imaginávamos que o mundo poderia ser tão grande, no entanto com distâncias tão vencíveis. Nosso espírito rejuvenesceu. Mesmo com tantos anos acumulados eu me sentia como se observássemos o horizonte, abraçados...
                E então você adoeceu. Talvez tenhamos nos empolgado demais em procurar a fonte da juventude dentro de nós mesmos e cometemos erros infantis. No barco, não havia suprimentos necessários para o inesperado. Não tínhamos comunicação efetiva com o restante do globo. Estávamos isolados dentro de nossa própria fábula.
                Tentei de tudo, mas não se podem apagar linhas já tracejadas em fonte permanente. O dia de sua morte fora de extrema calmaria. O céu azul confundia-se com a imensidão do oceano pacífico. Esparsas nuvens acrescentavam ao horizonte uma realidade que carecia de credibilidade. De tantos anos juntos, agora estava mais sozinho do que nunca. Uma parte de mim confundia-se com maré disforme e sem rumo, quebrando inutilmente em sua própria base.
                Foram dias de agonia. Questiono se alguém passara, à época, por tamanha solidão. Eu largara completamente a navegação, o barco a esmo tentava achar direção para seguir seu rumo. Eu me embriagava no convés, sem aceitar os fatos que se impunham. Quando esboçava recuperação de minhas energias tomei-me conta que, pelo meu desleixo, eu estava perdido na imensidão do oceano. As cartas de navegação não mais faziam sentido e alguns instrumentos já não me orientavam mais. A solidão, já no seu exponencial grandioso, achara novas formas de ampliar-se.
                Angustiosas semanas decorreram sem que eu tenha visto um pedaço de terra sequer. Aliás, não sei quanto tempo se passara. Dizem que, para os náufragos, o tempo é a maior das traições. De fato, ele me atingira como adaga pelas costas, cortando as poucas esperanças que eu tentava manter. Os dias eram longos e a luz do crepúsculo confundia-se com o amanhecer. Sem ter nenhuma companhia, eu estava numa solitária que navegava no maior presídio do mundo. A razão do meu viver era o seu sorriso. A sua risada contagiante, que permanecera a mesma desde quando te conhecera. Eram as reminiscências de nossa vida juntos, as experiências, viagens, aventuras, dores e amores.
                Escrevo a ti hoje por puro desespero. Como fiz em todas as manhãs, subi no mastro para tentar avistar algo. Dessa vez eu vira uma massa disforme verde ao longe. Deveria eu transbordar de felicidade por finalmente encontrar a salvação?               
Engana-te. Ao invés da felicidade, a dúvida.
                Se algo que a tanto desejamos se aproxima a uma distância palpável a confusão nos toma conta. É como se por toda a vida eu sonhasse com o inatingível e, de repente, ele me tocara à porta como se fosse obra do cotidiano. E se aquela terra não passasse de uma miragem causada pelas minhas precárias condições?           
                Por todos os dias imaginei a alegria de ser salvo, de encontrar abrigo e destino. Ao deitar e encostar a cabeça no travesseiro esboçava um sorriso. Era a restante esperança que me fazia pensar no momento que isso aconteceria. De tanto arquitetar o impossível, quando ele finalmente se torna real perdemos a noção do que é realidade e de como lidar com ela. Mesmo que fosse salvo, como continuaria a viver?       
                 Por mais que eu tenha idealizado este momento, os planos jamais se assemelham ao soco da realidade. O desconhecido nos atinge mesmo com o mais arquitetado dos projetos. É um golpe à nossa insistência de definir os próprios sonhos, que por tantas vezes permanecem na obscuridade de longínqua distancia. Quando, então, uma forte luz é jogada sobre eles, a dificuldade de enxergar é maior na claridade do que na penumbra.

Mas continuarei,            
pelo seu sorriso.             
Pelo entardecer daquele dia da primavera.       
Por nós...


Nenhum comentário:

Postar um comentário