sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Grampos e gerações

Grampos e gerações

                Era uma caixa de grampos, nada mais. No alto de sua trivialidade, na existência humilde de seus dias longos e sem perspectiva. Há anos encostada em uma gaveta bagunçada, onde acumulavam-se papéis e tralhas, por vezes era lembrada para servir de combustível para o grampeador vermelho e enferrujado que resistia aos encantos do tempo.

                Luiz passara a utilizar-se dos grampos com mais frequência ultimamente. Desde os tempos de colegial, as atividades estudantis cresciam, aumentando a demanda daquele curioso mecanismo que punha páginas e páginas unidas, mesmo com as mais diferentes linhas. Até então, nunca pensara que aquele simples artifício poderia ser tão curioso. Era simplesmente automático usá-lo quando necessário. Assim como qualquer objeto cotidiano, em que a sua função torna-se apenas artifício para prosseguirmos com nossas vidas, sem que sua real função seja questionada. Como foi inventado, concebido, articulado? Ora, não nos importa. Queremos apenas grampear.
                Luiz acostumara-se a recorrer à caixa de grampos quando precisava. Isso acontecia com tanta frequência quanto as curiosas chuvas de granizo que surpreendiam sua pacata cidade de tempos em tempos. A caixa era a mesma de sua infância, que seu pai usava para o trabalho. Ele ainda lembra-se do dia em que, sentado no colo do pai, abriu a gaveta, curioso que era, para descobrir o mundo ali dentro. Seus olhos encontraram aquela embalagem discreta, marrom e simplista. Nela, apenas as informações necessárias. Quantos grampos continha, qual tamanho e o preço, numa moeda já defasada na atualidade. Neste mesmo dia, por uma distração de seu pai, começou a rabiscar a caixa, tendo em mente um grandioso desenho, que continha todos seus complexos traços já planejados em sua imaginação. Se deixassem, teria toda uma obra de arte concluída. Acontece que fora interrompido nos primeiros traços, sem que pudesse acabá-la. Desde então não mais continuou a empreitada.
                Muitos anos depois, na despretensiosa tarefa de preencher novamente seu grampeador vermelho, suas mãos procuravam a caixinha, já tão gasta. Estava absorto nos estudos, revendo importante artigo acadêmico. Seus olhos não acompanhavam as mãos, que se guiavam sozinhas no território da gaveta. Apalpou o formato já tão conhecido, num gesto mecânico. Toda sua atenção, no entanto, desviou-se quando sentiu um calafrio. Eram os últimos grampos, a caixa agora estava vazia. Depois de tão longas aventuras do tempo, o combustível infinito chegara ao fim.
                Olhou para aquele objeto, sem importância, que agora era o centro de todos os seus neurônios. Institivamente lembrou-se do desenho que empreitara na infância. A chuva de memórias não cessava. Seu pai dominava a maioria. As lembranças de seus anos de estudo também se acumulavam. Os colegas há tanto esquecidos, as brincadeiras, a inocência, o primeiro beijo, a descoberta do que faria no futuro, os intervalos da escola, as festas e os amigos que ficaram. Tudo isso atravessava sua mente, como raio impactante e inesperado numa segunda-feira solitária.
Nova fase, novos mundos, novas viagens, o ingresso à universidade, o amor...
Tudo estava contido naquela caixinha, em que cada grampo usado resumia sua vida até então. Se cada um deles pudesse contar sua história, teria a biografia mais completa já narrada até então.
                Colocou o último conjunto no aparelho. Grampeou o grupo de folhas, mas falhou na primeira tentativa. Restavam apenas quatro.
                Aquilo abalou seus pensamentos como poucas pessoas poderiam fazê-lo. Sua vida agora tornara-se uma incógnita. O tempo, sempre implacável e com a sua lenta maré nunca deixando de avançar, começa a tocar seus pés. O aviso impôs-se.
Pela primeira vez as reminiscências tomaram a fronte de sua vida. Arrependimentos tomaram conta do momento. O principal, contudo, atingiu-o como que naturalmente. A epifania veio feito estrela cadente em noite nublada: franca e inesperada.  
                Luiz tomou conta que o tempo é cruel e por vezes sádico. Que os dias parecem longos, mas os anos passam num piscar de olhos. Que uma fase ruim da vida pode alongar-se em intermináveis momentos que fingem ser efêmeros, mas a infância é sorriso distante e pontual, tão breve como fascínio de uma paixão impossível e esquecida no mesmo dia. Questionou sua vida e seus hábitos, lembrou-se da família e, ao invés de ignorar a luta contra a ampulheta, resolveu estudar suas curiosas areias.

                Comprou uma nova caixa de grampos, desta vez prateados e com um design moderno. Em alguns anos, no entanto, seu filho pensará em como ela é antiga.

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