A linha cinza
Tão numerosos são os conselhos para seguir uma vida pacífica e chegar à
minha idade sem arrependimentos que deles nenhum tomei, nada segui, mas muito
vivi. As opiniões soberbas que julgam ter descoberto método mágico para o
viver, de tão superficiais enganam apenas os mais tolos. Perdoem-me a franqueza
e a liquidação de seus sonhos pueris, mas viver é ao mesmo tempo complexo e
simples demais para resumir em algumas frases altruístas.
Contudo, dentre todas as bobagens acumuladas em meus 80 anos, talvez uma delas
pudesse ter feito minha consciência encontrar a paz última. Cômico é o ser
humano que, com sua teimosia milenar, adora contrariar justamente aquilo que
mais lhe dizem. Libertar-se das correntes funcionou muito bem para mim. Apenas
esqueci-me que algumas delas são absolutamente necessárias para manter-se
minimamente preso ao mundo por nós construído.
Enfim, por muito ouvi que é fundamental concentrar-se naquilo que foi
vivido, não pensando nas possibilidades amarguradas pelo nosso enigmático
destino, isto é, não remoer o passado em busca daquilo que poderia ter sido
feito.
Nisso falhei miseravelmente. Tentarei lhe explicar melhor. Minha mente
não entende a simplicidade de nossas escolhas e de como estas tencionam a linha
de nossas vidas.
Como podem alguns segundos definir se conhecerei certa pessoa? Como pode
essa mesma fração de tempo ser a diferença entre ter meu café pronto ou a
funcionária da cafeteria derrubá-lo, causando-me atrasos e, na saída da loja,
ser atropelado por um carro que vinha em contramão? O voo que perdi, o hospital
que escolhi, a questão que errei no vestibular, o sorriso não trocado com um
estranho, os livros que não li, o emprego que não consegui...
Tudo formando uma bizarra sinfonia de notas que nunca ouvi, mas que
poderiam formar uma bela melodia, alternativa aquela que meus ouvidos estão habituados.
Melodia que só existe neste paralelo inatingível e que sabe-se lá o por quê
dela não ser a titular de minha vida. Ora, você entende? Cada pedaço do
tracejado de nossas linhas são escolhas e sua forma final é completamente
aleatória.
É por isso que ainda lembro-me de seus olhos azuis. Magníficos, à luz
suave do pôr-do-sol andino. Rimos ao conversarmos em três línguas diferentes, eu
não fazia ideia de que parte do mundo você veio. Havia, porém, um idioma comum
entre nós. O olhar completo, em que palavras não conseguem traduzir sua
espontaneidade. Nós dois sabíamos o que acabara de acontecer. Sua pele
aveludada tingia-se com o tom alaranjado do ocaso. Assim é como te verei para
sempre. Não conheci jamais sua pele tingida pelo amanhecer, pelas frias noites das
montanhas próximas. Não a vi avermelhar-se de vergonha, ou franzir-se de raiva.
Não vi em seus traços o sorriso sutil depois de nosso primeiro beijo. E muito
menos sofrer os avanços invencíveis da idade.
O vulcão próximo entrara em erupção na noite anterior, expelindo sua lava
e cinzas aos céus mais longínquos e fechando aeroportos, acarretando mudança de
planos em praticamente todos os que tinham grandes mochilas nas costas. Os efeitos
logo chegariam onde estávamos, todos já tínhamos novos destinos.
O céu estava límpido, típico da região desértica, mas posso jurar que vi
a primeira cinza chegar e pousar em seus grandes cílios. Cinza que fez do
encontro o último. Que fez nossas próximas rotas não coincidirem por acasos
demais para explicar-se. E, por um grão,
seus lindos olhos azuis fecharam-se para mim.
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