domingo, 17 de maio de 2015

A linha cinza

A linha cinza

Tão numerosos são os conselhos para seguir uma vida pacífica e chegar à minha idade sem arrependimentos que deles nenhum tomei, nada segui, mas muito vivi. As opiniões soberbas que julgam ter descoberto método mágico para o viver, de tão superficiais enganam apenas os mais tolos. Perdoem-me a franqueza e a liquidação de seus sonhos pueris, mas viver é ao mesmo tempo complexo e simples demais para resumir em algumas frases altruístas.
Contudo, dentre todas as bobagens acumuladas em meus 80 anos, talvez uma delas pudesse ter feito minha consciência encontrar a paz última. Cômico é o ser humano que, com sua teimosia milenar, adora contrariar justamente aquilo que mais lhe dizem. Libertar-se das correntes funcionou muito bem para mim. Apenas esqueci-me que algumas delas são absolutamente necessárias para manter-se minimamente preso ao mundo por nós construído.  Enfim, por muito ouvi que é fundamental concentrar-se naquilo que foi vivido, não pensando nas possibilidades amarguradas pelo nosso enigmático destino, isto é, não remoer o passado em busca daquilo que poderia ter sido feito.
Nisso falhei miseravelmente. Tentarei lhe explicar melhor. Minha mente não entende a simplicidade de nossas escolhas e de como estas tencionam a linha de nossas vidas.
Como podem alguns segundos definir se conhecerei certa pessoa? Como pode essa mesma fração de tempo ser a diferença entre ter meu café pronto ou a funcionária da cafeteria derrubá-lo, causando-me atrasos e, na saída da loja, ser atropelado por um carro que vinha em contramão? O voo que perdi, o hospital que escolhi, a questão que errei no vestibular, o sorriso não trocado com um estranho, os livros que não li, o emprego que não consegui...
Tudo formando uma bizarra sinfonia de notas que nunca ouvi, mas que poderiam formar uma bela melodia, alternativa aquela que meus ouvidos estão habituados. Melodia que só existe neste paralelo inatingível e que sabe-se lá o por quê dela não ser a titular de minha vida. Ora, você entende? Cada pedaço do tracejado de nossas linhas são escolhas e sua forma final é completamente aleatória.
É por isso que ainda lembro-me de seus olhos azuis. Magníficos, à luz suave do pôr-do-sol andino. Rimos ao conversarmos em três línguas diferentes, eu não fazia ideia de que parte do mundo você veio. Havia, porém, um idioma comum entre nós. O olhar completo, em que palavras não conseguem traduzir sua espontaneidade. Nós dois sabíamos o que acabara de acontecer. Sua pele aveludada tingia-se com o tom alaranjado do ocaso. Assim é como te verei para sempre. Não conheci jamais sua pele tingida pelo amanhecer, pelas frias noites das montanhas próximas. Não a vi avermelhar-se de vergonha, ou franzir-se de raiva. Não vi em seus traços o sorriso sutil depois de nosso primeiro beijo. E muito menos sofrer os avanços invencíveis da idade.
O vulcão próximo entrara em erupção na noite anterior, expelindo sua lava e cinzas aos céus mais longínquos e fechando aeroportos, acarretando mudança de planos em praticamente todos os que tinham grandes mochilas nas costas. Os efeitos logo chegariam onde estávamos, todos já tínhamos novos destinos.

O céu estava límpido, típico da região desértica, mas posso jurar que vi a primeira cinza chegar e pousar em seus grandes cílios. Cinza que fez do encontro o último. Que fez nossas próximas rotas não coincidirem por acasos demais para explicar-se.  E, por um grão, seus lindos olhos azuis fecharam-se para mim.

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