quarta-feira, 29 de julho de 2015

Telefonemas
                
                      A metrópole lhe é cruel. São três e catorze e não consegue dormir. Há certa energia no ar que não deixa sua consciência repousar em paz. Uma nota de agitação, como que se todos os humanos enfurnados em altos prédios emitissem sons inaudíveis. Não é o barulho dos carros que lhe incomoda, nem a claridade excessiva que invade o quarto e permite ver suas próprias mãos.            
                Não.
                É a vida da cidade, que brinca com ele e propõe desafios durante toda a noite. É o movimento de todos que gostariam de estar agitados ao invés de dormirem para suas rotinas se repetirem.       
Em alguns bairros da cidade, mesmo nesta terça-feira de inverno, esta energia ganha traços de realidade, com seus bares enxotando os últimos clientes e garçons impacientes varrendo as calçadas. A cidade pulsa, mas ainda assim jamais sentirá toda sua força.
                Levanta. É inútil permanecer deitado envolto em mil pensamentos. Abre a janela, mora no décimo quinto andar.                Andares altos preenchem o vazio da superioridade humana, pensa. Por alguns momentos estar tão alto lhe faz sentir bem. Estar acima é bom, mas deixa-o constrangido. Não há mais para onde escapar.
                Toca a tela de proteção. Para que tinha isso, afinal? Animais ou crianças não faziam parte do apartamento alugado. A tela era uma prisão, escancarava a divisão entre o apartamento e a cidade, dando-lhe a certeza de não pertencer a nem um nem outro. Deveria arrancá-la logo, pensa.               
                Toca-a. É inverno, um daqueles dias em que o frio apenas nos acaricia, sem que seja suficiente para reclamar. Uma brisa fina consegue envolver ainda mais o ar urbano. É realmente muito tarde, todos os prédios possuem uma ou duas luzes acessas, no máximo. Juntava-se a estas. O que fariam todos aqueles outros pontos luminosos? Sente vontade de chamar a todos. Tomar um vinho, ouvir Chico, passar o tempo. Todos estariam realmente acordados ou acendiam luzes para fugir da escuridão crua de uma madrugada solitária?         
Sente-se ainda mais sozinho, talvez fosse o único acordado em seu prédio. Dura a rotina, que nos faz repetir movimentos inquestionavelmente. Quando de repente nos deparamos com nós mesmos estamos com as luzes apagadas quando queríamos é na verdade acabar com a garrafa de malbec na geladeira, divagando até o amanhecer, sem responsabilidades.               
                Ouve o barulho do trem ao longe. É engraçado, poucos reparam no trem. Vivemos num país que simplesmente abandonou o investimento ferroviário. Está tão distante de nosso dia-a-dia que, em um conversa recente, ele estranhou o fato de seus amigos que moram nas redondezas nunca terem ouvido seu apito característico. Não estava louco, ele ouvia-o ao menos duas vezes por semana. Talvez passasse despercebido para os outros, podiam confundir com um ônibus ou qualquer coisa, extinguindo o passado por pensarem que era presente.
Engraçado, engraçado. De tantos barulhos, não conseguiam parar e prestar atenção no mais enigmático deles?
                Por alguma conexão repentina de seu cérebro, seus pensamentos foram parar em aeroporto, não um específico, todos somados, especificamente os mais movimentados. Madrugada era insônia, luta com a cama, mas também era aeroporto. Interessante lugar, que o hábito o fez ter um horário totalmente desconexo com o mundo real. Quando é que se convencionou que pegar um voo às quatro da manhã para Barcelona era completamente aceitável?           
                Este horário ímpar confere uma pujança especial ao lugar. Em qualquer hora é fascinante observar o terminal e a dança de aeronaves no pátio. Um fluxo de pessoas que não reparam onde estão, somente querendo estar em algum outro lugar. Lembra-se da infância, quando pelas primeiras vezes viajou de avião. Todas de madrugada. Era excitante acordar três da manhã. Hoje, não mais.              
                Na verdade, há uma razão especial para estar tão inquieto. Aguarda um telefonema importante. Nos últimos tempos, seu problema de insônia não tem lhe perturbado tanto. A preocupação, somada com a vibração da cidade, é que o potencializa em alto grau.          
Sabe que o telefone irá tocar e sabe que será hoje. Lembra-se de aeroporto, então o súbito lhe acomete: o telefonema poderá vir de qualquer lugar do mundo. Não pensara nisso antes. Não tinha calculado nenhum fuso-horário. Será que já havia tocado? Impossível, estava acordando durante toda a noite.       
Quando lhe falaram que ligariam hoje, seria esse o hoje brasileiro ou o hoje japonês, indiano, australiano?
Fuso-horário é realmente uma coisa estranha, pensa. Enquanto durmo sempre tem alguém almoçando. E quando viajamos contra ele e chegamos exatamente na mesma hora que partimos?
É daquele tipo de coisa que é melhor não tentar entender, resta-nos só aceitar.
                Assim como um telefonema. Há todo um regramento a parte. Primeiro, a parte que completa a ligação tece um ligeiro cumprimento, identificando-se para aí então começar as indagações. A primeira palavra é sempre o alô. Por que o alô? Muitas vezes são completos estranhos que ao invés de dizerem olá, prazer, como vai, meu nome é tal, qual é a sua cor favorita, dizem alô. Imagine-se a situação, entrar num elevador e dar de cara com um desconhecido:
- Alô.
–Alô     
É, não funciona. São outras regras.        

Esse mundo é realmente estranho.      

Quando é que essa porcaria vai tocar? 

Acende um cigarro.



*Aqui a noite é serena*

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