domingo, 30 de agosto de 2015

Sinestesia

As luzes mais bonitas da cidade eram as da ponte suspensa. Longas, quentes, em perfeitas fileiras. Tremeluziam na negritude do rio sem movimento. Ligavam esperançosamente um lado ao outro do oceano de prédios. Mas eu não contava com a esperança em minha vida. Precisava de alguma ponte para sustentar-me.
Foi então que eu vi, e lembrei-me em segundos de anos deixados para trás.

Eu estava na varanda de nossa chácara. Meus irmãos e meu pai tinham ido pescar. Não pude ir. Era pequeno, falava demais, não conseguia ficar quieto. Espantava os peixes.        
Então peguei um livro para ler. Cheirava mofo. Pertencia a uma famosa coleção, roubado da estante do quarto de meus pais. Ninguém nunca saberia, era um crime perfeito. Peguei para desafia-los, mas na verdade ele começou a me interessar profundamente. Alguma magnitude única prendeu-me e eu todas as noites na varanda o lia, com metade da visão mirando as estrelas e a outra metade cedendo àquelas palavras tão inéditas.
E pela primeira vez meus olhos foram seduzidos.

Era o farfalhar típico das noites de verão. O rugido do vento fazia tremer os galhos e obrigava as cigarras a cantar. Eram milhares de sons escondidos na escuridão. A chácara não tinha vizinhos. Nós éramos a minoria ali.
Uma luz verde despontou. Deixei o livro de lado e passei a procurar a fonte de luz oscilante. Para onde fora?
Piscou a alguns metros dali, instantes depois. Poderia ela voar? 

Uma luz que voa. Eu estava confuso.

Com o livro de lado, caminhava sem rumo pelo jardim.
O ponto verde acendeu novamente. Estava em alguma árvore. Definitivamente voava. Então a verdade me veio de pronto: um inseto que tem uma lanterna.
E passou a ser meu inseto preferido.
Por todas as demais noites não me importei com a falta de pescaria. Queria eu confirmar o meu segredo mais oculto.
Mas não eram fáceis de encontrar. 

            Continuei a ler e a mirar as estrelas. Minha mãe só me permitia ficar acordado até às onze horas. Eu esperava o silêncio reinar na casa para desvencilhar-me das cobertas carinhosamente postas e pular a janela. Caminhava até a varanda, acompanhado sempre de um fiel livro. O banco me esperava e passaríamos a noite inteira juntos.

E assim foi provavelmente o mais belo segredo de minha infância. Ninguém nunca soube. A cada vez que avistava esse pequenino fulgor esverdeado tudo valia a pena. Era a tradução da inquietude do mundo: nunca poderia entendê-lo, restava apenas apreciar. Sim, pois a criança não entende o vaga-lume. Não entende também as guerras, a corrupção e o preconceito. Resta-lhe somente formar suas próprias teorias sobre os fenômenos mundanos. E, para os vaga-lumes, eu tinha a minha singular transcrição. Eram estrelas que voavam muito próximas de nós. Animais que me visitavam para mostrar que afinal as estrelas não eram tão distantes.

Uma vez ouvi um amigo dizer que, brincando pela mata com seu primo, avistou um de meus preciosos astros. Capturou-o e o colocou num pote de vidro. Achei um absurdo. A liberdade lhes pertencia.       
Obriguei, fora de meus ânimos, a devolver a minha estrela à natureza.

Os vaga-lumes eram meus, ninguém poderia lhes fazer mal.
Então eu cresci.

Com a adolescência veio também a rebeldia e a rejeição a tudo. Não íamos mais à chácara com tanta frequência. Aos poucos, as luzes esverdeadas foram se apagando de minha vida.

Lembro que, quando primeiro as vi, jurei para sempre protegê-las. Talvez por isso tenha entrado na faculdade de Direito sonhando ser um advogado ambiental.

Mantive esse sonho aceso durante todos os cinco anos. Era definitivamente algo mais forte do que eu. Lutava contra as grandes corporações, protestava em favor do meio ambiente. Consegui um estágio numa famosa ONG internacional. Eu era feliz nos tempos de faculdade.             

            A chácara foi vendida, fazia anos que não íamos para lá. Talvez tenha sido melhor assim. Tudo estava abandonado nas memórias de uma criança.

Depois de formado enfrentei outra realidade. Ser um advogado ideológico não sustentava a mulher e filho que tinha para criar. Corri atrás do primeiro emprego que me apareceu. Rapidamente fui ganhando reconhecimento na empresa. Passei a dar risada das piadas que meus colegas contavam. Aos poucos minha ideologia foi morrendo.

Então chegamos à noite de hoje. Nunca me senti tão sozinho. É a festa de fim de ano da empresa. Todos os setores juntos. O jurídico inteiro está aqui bebendo e se divertindo. Mas eu, de alguma forma, não consigo aceitar. Subi para o terraço, a vista é linda daqui.
No horizonte eu vi.
Uma luz verde. Pensei que estivesse delirando. Eles não estavam extintos? O futuro não é bom. O futuro é cinza. Pensei que eles haviam ido embora para sempre.
Mas a minha estrela voltou. Piscou a alguns metros dali.

 Dizem que a verdadeira felicidade é viver em paz para amar. Desci pelas escadas até o térreo. 
A ponte estava construída.



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