Pouparei o
leitor de extenso prólogo, sintetizando nossa introdução.
Uma família.
Quatro pessoas. Um deles será nosso personagem. Nunca haviam visto um eclipse,
solar ou lunar. Nunca propriamente viveram. Caberá ao interlocutor decidir o
porquê de nunca terem visto o curioso fenômeno celeste. Pois na verdade não só jamais
o observaram como também não sabiam de sua existência ou significado. Falta de sorte. Falta de condições, oportunidades.
Pobreza. Compromissos acumulados. Impossibilidade de ver o mundo como ele é. Adventos
climáticos. Tanto faz. Também ficará ao seu critério decidir a época dos fatos
a seguir relatados, tendo em vista que são atemporais.
Sabe-se,
no entanto, que um eclipse solar total tem a duração de aproximadamente sete
minutos e quarenta segundos, levando trezentos e sessenta anos para se repetir
num mesmo ponto do globo terrestre.
O
sol estava escaldante. Queimava-lhe a pele sem nenhuma cerimônia. As valentes
brasas atingiam seu corpo inteiro. Mesmo moreno ganhava tons de vermelho onde a
exposição era mais constante. Seu pai também fora castigado desde cedo pelo
calor invencível. Nele os efeitos do tempo já estavam por inteiro arremessados.
Seu futuro, portanto, havia sido traçado antes do nascimento. Assim fora
durante gerações, sem que se saiba quem tenha sido o primeiro a ficar com as
mãos cheias de cicatrizes e a pele enrijecida. Nosso personagem não terá nome,
por apenas ser mais um elemento da linha sucessória abrasante.
Na
aurora ou crepúsculo apenas enxergava no horizonte a rotina impondo-lhe o mesmo
ritmo, trabalhar para o viver e viver para trabalhar. A lavoura, como
subsistência, não era somente labor. Era a maior responsabilidade que poderia
ter. A vida de outros dependia dele. A árida região exigia certos cuidados
extremos com a terra, conhecimentos que chegaram através de décadas e
fatalidades em seu percurso.
O
cabo de madeira tosca machucava suas mãos em crescimento, não sentia dor. A habitualidade
leva a inacreditáveis capacidades. Os sádicos raios ricocheteavam na terra e
voltam em cheio para si. Queria tomar água, mas o poço mais próximo exigia ao
menos vinte minutos de caminhada. Não tinha por hábito levar consigo alguma
reserva especial para o dia, apenas acostumava-se sem o líquido. Desta vez,
contudo, sentia realmente vontade de beber algo. Por um momento sentiu-se
derrotado por sucumbir ao desejo. Então lhe acometeu que talvez aquilo fosse
realmente necessário.
Encostou
a enxada no cotovelo, apoiando-se para ganhar alguns segundos de descanso.
Olhou o horizonte e o sol austero. Percebeu em seu brilho algo de diferente.
Nada poderia ser diferente. Sua vida apenas seguiria o ritmo imposto. Voltou a
trabalhar, tentado concentrar-se. Sua mente estava em conflito. A rebeldia da
juventude parecia ganhar a batalha com toda a responsabilidade que acumulara ao
longo de anos de trabalho. Lembrou-se de quando tomou um banho de chuva com sua
família. Estavam todos assustados no casebre, o vento era forte e podia levar
consigo os telhados da vizinhança. Ele e a irmã escondiam-se embaixo da cama, a
mãe rezava na mesa da sala. O pai estava sem atitudes, apenas olhando a pequena
janela esperando pelo melhor. Então o sol despontou nas nuvens, num belo
espetáculo colidindo com as fortes gotas da chuva. Falou para tirarem suas
roupas de cima de e correrem ao quintal. De início ninguém acreditou naquilo,
então ele correu para o meio da tempestade. Todos o seguiram. Todos riram e
lavaram a alma.
Aquela
lembrança o fez sorrir. Fazia tanto tempo... Não recordava de outro momento em
que todos encontraram tal felicidade simultânea.
Não queria
mais o sol opressor. Queria viver mais momentos como aquele.
Não resistiu à
curiosidade e novamente observou o corpo celeste. Desta vez teve certeza
absoluta de que algo estava alterado. Um pouco do brilho começava a esvair-se.
O que era aquilo?
De olhos semicerrados, ainda torturados pelo fulgor intenso, não conseguia parar de mirar o astro rei. A sombra da incerteza parecia aumentar a cada segundo, num ritmo tão lento que lhe causava certa inquietude.
De olhos semicerrados, ainda torturados pelo fulgor intenso, não conseguia parar de mirar o astro rei. A sombra da incerteza parecia aumentar a cada segundo, num ritmo tão lento que lhe causava certa inquietude.
Confuso, nada
parece fazer sentido.
O ponto de luz
cresce e já cobre metade da bola de fogo. Deixa-o perplexo. Sente-se culpado,
pois era tudo obra de seu desejo. O seu entorno ganhava ares de anoitecer. O
porvir causava medo.
Com menos
intensidade os olhos passam a doer menos. Agora grande parte já é escuridão.
Uma última linha esperançosa de luz alcança o sol, como uma estrela longa e
muito intensa. É o fiapo restante de sua vida anterior, a ligação que tem com o
mundo. Aquela estrela padecendo representa tudo o que vivera até aqui. A linha
persiste. O espetáculo é maravilhoso. Pela primeira vez toma conta disso.
Senta-se,
mesmo nunca descansando no trabalho.
Uma lágrima
fica presa em seus cílios. Era a coisa mais bonita que já havia visto. A fina
linha de luz ilumina com seu brilho alaranjado todo o horizonte, num misto de
crepúsculo e penumbra. A paisagem é incrível. Ao longe as montanhas verdejantes
a perder de vista ganham na meia-luz do fenômeno uma igualdade, tornando-as
linhas de um mesmo tracejado. Um rio serpenteia por entre elas e suas águas
refletem todo o espetáculo.
Mesmo
laborando ali todos os dias não tem o hábito de admirar a paisagem. Agora, no
entanto, parece ultrajante que nunca tenha feito isso. Não quer mais voltar ao
que era. Nunca mais vai. Pela primeira vez sente-se vivo e parte de tudo
aquilo, apesar de ser tão diminuto diante da imensidão do que estava
acontecendo. O momento parece durar uma eternidade.
Só então a
linha de luz vai diminuindo, tornando-se apenas um ponto muito brilhante. Num
instante todo o sol está tomado pela escuridão. Algo lhe esconde, uma incrível
esfera negra está na sua frente. Todo o esforço do invencível corpo celeste é
em vão. A sombra o domina por completo. Atrás dela há uma luz bruxuleante do
que restou do sol, mas é fraca, um insulto a toda força que ele tem.
Ainda sentado
sabe que o momento é crucial. A catártica sensação agora precisa encarar seu
futuro. O que vai acontecer?
Queria
permanecer assim, mas tem medo. Agora será aquela a realidade estabelecida,
tendo ele de se acostumar com seus profundos desejos realizados e a sombra da
incerteza? Ou então a luz voltará,
vencendo a sombra pouco a pouco e impondo seu ritmo implacável, voltando tudo
ao que era antes?
E nessa fase
incrível, de contradições finadas, abrasadas, não quer levantar.
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