quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Catarse


Pouparei o leitor de extenso prólogo, sintetizando nossa introdução.

Uma família. Quatro pessoas. Um deles será nosso personagem. Nunca haviam visto um eclipse, solar ou lunar. Nunca propriamente viveram. Caberá ao interlocutor decidir o porquê de nunca terem visto o curioso fenômeno celeste. Pois na verdade não só jamais o observaram como também não sabiam de sua existência ou significado.  Falta de sorte. Falta de condições, oportunidades. Pobreza. Compromissos acumulados. Impossibilidade de ver o mundo como ele é. Adventos climáticos. Tanto faz. Também ficará ao seu critério decidir a época dos fatos a seguir relatados, tendo em vista que são atemporais.
                
          Sabe-se, no entanto, que um eclipse solar total tem a duração de aproximadamente sete minutos e quarenta segundos, levando trezentos e sessenta anos para se repetir num mesmo ponto do globo terrestre.
                
                 O sol estava escaldante. Queimava-lhe a pele sem nenhuma cerimônia. As valentes brasas atingiam seu corpo inteiro. Mesmo moreno ganhava tons de vermelho onde a exposição era mais constante. Seu pai também fora castigado desde cedo pelo calor invencível. Nele os efeitos do tempo já estavam por inteiro arremessados. Seu futuro, portanto, havia sido traçado antes do nascimento. Assim fora durante gerações, sem que se saiba quem tenha sido o primeiro a ficar com as mãos cheias de cicatrizes e a pele enrijecida. Nosso personagem não terá nome, por apenas ser mais um elemento da linha sucessória abrasante.
                
                 Na aurora ou crepúsculo apenas enxergava no horizonte a rotina impondo-lhe o mesmo ritmo, trabalhar para o viver e viver para trabalhar. A lavoura, como subsistência, não era somente labor. Era a maior responsabilidade que poderia ter. A vida de outros dependia dele. A árida região exigia certos cuidados extremos com a terra, conhecimentos que chegaram através de décadas e fatalidades em seu percurso.
                
            O cabo de madeira tosca machucava suas mãos em crescimento, não sentia dor. A habitualidade leva a inacreditáveis capacidades. Os sádicos raios ricocheteavam na terra e voltam em cheio para si. Queria tomar água, mas o poço mais próximo exigia ao menos vinte minutos de caminhada. Não tinha por hábito levar consigo alguma reserva especial para o dia, apenas acostumava-se sem o líquido. Desta vez, contudo, sentia realmente vontade de beber algo. Por um momento sentiu-se derrotado por sucumbir ao desejo. Então lhe acometeu que talvez aquilo fosse realmente necessário.
                
                      Encostou a enxada no cotovelo, apoiando-se para ganhar alguns segundos de descanso. Olhou o horizonte e o sol austero. Percebeu em seu brilho algo de diferente. Nada poderia ser diferente. Sua vida apenas seguiria o ritmo imposto. Voltou a trabalhar, tentado concentrar-se. Sua mente estava em conflito. A rebeldia da juventude parecia ganhar a batalha com toda a responsabilidade que acumulara ao longo de anos de trabalho. Lembrou-se de quando tomou um banho de chuva com sua família. Estavam todos assustados no casebre, o vento era forte e podia levar consigo os telhados da vizinhança. Ele e a irmã escondiam-se embaixo da cama, a mãe rezava na mesa da sala. O pai estava sem atitudes, apenas olhando a pequena janela esperando pelo melhor. Então o sol despontou nas nuvens, num belo espetáculo colidindo com as fortes gotas da chuva. Falou para tirarem suas roupas de cima de e correrem ao quintal. De início ninguém acreditou naquilo, então ele correu para o meio da tempestade. Todos o seguiram. Todos riram e lavaram a alma.
                Aquela lembrança o fez sorrir. Fazia tanto tempo... Não recordava de outro momento em que todos encontraram tal felicidade simultânea.

Não queria mais o sol opressor. Queria viver mais momentos como aquele.

Não resistiu à curiosidade e novamente observou o corpo celeste. Desta vez teve certeza absoluta de que algo estava alterado. Um pouco do brilho começava a esvair-se. O que era aquilo?
De olhos semicerrados, ainda torturados pelo fulgor intenso, não conseguia parar de mirar o astro rei. A sombra da incerteza parecia aumentar a cada segundo, num ritmo tão lento que lhe causava certa inquietude.

Confuso, nada parece fazer sentido.

O ponto de luz cresce e já cobre metade da bola de fogo. Deixa-o perplexo. Sente-se culpado, pois era tudo obra de seu desejo. O seu entorno ganhava ares de anoitecer. O porvir causava medo.

Com menos intensidade os olhos passam a doer menos. Agora grande parte já é escuridão. Uma última linha esperançosa de luz alcança o sol, como uma estrela longa e muito intensa. É o fiapo restante de sua vida anterior, a ligação que tem com o mundo. Aquela estrela padecendo representa tudo o que vivera até aqui. A linha persiste. O espetáculo é maravilhoso. Pela primeira vez toma conta disso.

Senta-se, mesmo nunca descansando no trabalho.

Uma lágrima fica presa em seus cílios. Era a coisa mais bonita que já havia visto. A fina linha de luz ilumina com seu brilho alaranjado todo o horizonte, num misto de crepúsculo e penumbra. A paisagem é incrível. Ao longe as montanhas verdejantes a perder de vista ganham na meia-luz do fenômeno uma igualdade, tornando-as linhas de um mesmo tracejado. Um rio serpenteia por entre elas e suas águas refletem todo o espetáculo.

Mesmo laborando ali todos os dias não tem o hábito de admirar a paisagem. Agora, no entanto, parece ultrajante que nunca tenha feito isso. Não quer mais voltar ao que era. Nunca mais vai. Pela primeira vez sente-se vivo e parte de tudo aquilo, apesar de ser tão diminuto diante da imensidão do que estava acontecendo. O momento parece durar uma eternidade.

Só então a linha de luz vai diminuindo, tornando-se apenas um ponto muito brilhante. Num instante todo o sol está tomado pela escuridão. Algo lhe esconde, uma incrível esfera negra está na sua frente. Todo o esforço do invencível corpo celeste é em vão. A sombra o domina por completo. Atrás dela há uma luz bruxuleante do que restou do sol, mas é fraca, um insulto a toda força que ele tem.

Ainda sentado sabe que o momento é crucial. A catártica sensação agora precisa encarar seu futuro. O que vai acontecer?

Queria permanecer assim, mas tem medo. Agora será aquela a realidade estabelecida, tendo ele de se acostumar com seus profundos desejos realizados e a sombra da incerteza?  Ou então a luz voltará, vencendo a sombra pouco a pouco e impondo seu ritmo implacável, voltando tudo ao que era antes?

E nessa fase incrível, de contradições finadas, abrasadas, não quer levantar.



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