Areias ao
vento. A longa orla o deixa atônito. O horizonte parece não ter fim, não sabe
para onde olhar. A alguns metros dali as ondas quebram, farfalhando na
madrugada de um céu sem estrelas. Sente
a areia em seus pés. Havia se esquecido de como essa sensação é
libertadora. Afunda os dedos, brincando
num ritmo descompassado. As luzes da cidade seguem a curva da praia até a ilha
Porchat ao fundo. A antena de um dos poucos prédios da ilhota ergue-se acima de
tudo e todos, seu ponto de luz vermelho é a única estrela brilhante no céu.
Apenas alguns
refletores da praia estão acesos. Estão numa penumbra, que se confunde com a
imensidão do mar logo à frente. Ao longe um grande navio cargueiro
desfila. Fechando os olhos consegue
imaginar o barulho da embarcação vencendo as águas, imponente. Para onde iria?
China, Holanda, Angola? Os tripulantes de certo teriam uma longa jornada nos
próximos dias. Ou seriam semanas, meses até? Pensa na solidão que teriam que
enfrentar. O Atlântico como melhor amigo...
Aperta a mão
dela firmemente. Pela primeira vez desde que desceram no carro dá-se conta que
estavam de mãos dadas. Fascinado pela mudança de ambiente conseguiu abstrair
tudo o mais que ocorria em volta. Agora, com medo da solidão das águas que se
misturam com o negrume da noite, abraça-a. Estão juntos há 15 anos. Metade de
suas vidas. Quando ainda eram adolescentes e não tinham filhos costumavam
descer a serra todos os finais de semana. Era uma época incrível. Preocupações
escassas, os brilhos em seus olhos eram mais fortes, a chama do amor era
majestosa, inabalável. Porém a vida atingiu-os com a fugacidade de um relâmpago
numa noite de dezembro. Solitário, mas que desencadeou uma tempestade. Ser pai
tão jovem não estava em seus planos.
Logo começou a
trabalhar em dois empregos, não poderia deixar seu filho passar qualquer
necessidade. Era o seu compromisso. Casaram-se ainda naquele ano. A lua de mel
foi a última viagem que fizeram juntos. Depois a rotina deixou-os presos para a
vida sem o viver. O cinza predominou às verdejantes montanhas que admiravam da
janela do Opala quando desciam a serra. Trem. Asfalto. Poluição. Casas tão
juntas onde não há espaço para nenhuma.
São duas da
manhã. Não há quase ninguém na praia. Próximo dali, encostados na parede do
canal, um grupo de amigos se reúne em volta de uma fogueira. Bebem diretamente
das garrafas. As rápidas notas de um violão ecoam por alguns metros. São todos
universitários. É final de junho, estão quase de férias, faltando apenas
conferir algumas notas e arrumar as malas para voltarem para suas respectivas
cidades. Não há preocupações. A música é leve, todos ajudam a cantar. Quase não
conversam, apenas aproveitando a melodia.
O violeiro se
cansa da função que estava exercendo. Um silêncio atinge o grupo, no entanto
não consegue perdurar por mais que alguns segundos, sendo logo substituído por
risadas aéreas, leves. São formadas duas ou três conversas diferentes. Assim
permanecem por certo tempo. Carlos não participa de nenhuma delas. Gentilmente
começa a brincar com o violão. Passa a cantar algumas músicas conhecidas em voz
baixa, dedilhando nas cordas. Depois de
algumas faixas sua namorada o acompanha. Aos poucos o coro ganha adesão de
todos. Ele vai mudando o estilo das músicas, até chegar numa que todos gostam,
mas ninguém sabe o nome.
Uma mistura de
Reggae e Indie que deixa o corpo mais leve e faz sentir melhor a areia nos pés.
-- De quem é
mesmo essa música, Carlos? É muito boa. Pergunta
um dos amigos ao final.
-- É minha.
-- Sua? Muitos ali também se mostram surpresos.
-- Sim, eu fiz
semana passada.
Carlos tem 21
anos. Toca desde os 8. Estuda Psicologia. Já gravou dois discos numa pequena
gravadora. Na sua cidade do interior duas de suas músicas foram para uma rádio
local e foram pedidas mais vezes, porém não emplacaram. Dentro de duas semanas
aquele som que acabara de tocar estaria também na mesma rádio, porém será
pedida muitas vezes. Ele realizará seu sonho mais antigo.
Prossegue com as
suas composições, já que estava tendo boa aceitação do público.
Alguns passos
dali Marcelo, ainda de mãos dadas, perde no horizonte o cargueiro que estava
acompanhando navegar. Desapareceu na noite. Resolve olhar para o outro lado. As
flamas bruxuleantes da pequena fogueira se destacam. Ele ouve algumas notas do
instrumento perdidas ao vento. Aos poucos vai se aproximando do grupo de
amigos. Sua esposa não gosta muito da ideia, já está tarde e o cansaço a
invade. Conseguiram deixar as crianças com os avós e, em uma pequena loucura
repentina, fugiram do restaurante japonês, onde comemoravam o aniversário de
casamento. Foram direto para a praia, as saudades daquela época onde podiam
ouvir música juntos, cabeça no ombro, infinito azul à frente, bateram de um
jeito incontornável. As barreiras se romperam e, afinal, não era tão distante.
Ficou a sensação de que deveriam ter feito isso antes.
Mas ela estava
fatigada, trabalhara durante a manhã inteira e depois arrumou a casa. Queria ir
embora.
Cada vez mais
próximo o casal começou a ser notado pelo grupo de amigos. As vidas começaram a
se colidir na aleatoriedade completa do mundo. Eles estavam vestidos para um
encontro num bom restaurante, já os amigos todos à vontade, sentindo a praia.
Era evidente o choque de diferenças entre os grupos.
Em seu íntimo
queria sentar na areia, curtir o som do violão e conversar com aquelas pessoas
novas. Tinha vergonha de incomodar e precisavam voltar para Santo André ainda
naquele dia.
A esposa
puxava-o. Era realmente hora de partir.
Então um dos
amigos falou para que sentassem mais próximos do som, que não tinha problema
algum.
Algumas
insistências depois ele sentou. Já ela não queria sentar na areia, iria se
sujar.
Marcelo ficou
bastante impressionado quando descobriu que as músicas eram do jovem rapaz de
longos cabelos. Ele sempre quis aprender violão. Quando criança tinha uma
alegria enorme em visitar os tios, pois sua tia sabia tocar com perfeição. Ela
o ensinou o básico e o menino aprendia rápido, formando logo acordes. Nas horas
vagas ele escrevia alguns versos, imaginando a melodia que poderiam ter. Porém
sem a prática não conseguia dar prosseguimento e, quando se encontravam
novamente, somente no ano seguinte, poucos eram os avanços. Depois da morte
dela ele nunca mais tocara num instrumento como aquele.
A memória
aquece seu coração.
A musicalidade
nunca o deixou. Aos domingos reúne alguns amigos na laje e ensaia alguns tons
no pandeiro. Mas não era a mesma coisa. Sentia que algo lhe faltava. Amava por
demais a esposa e os filhos. O trabalho também não era de todo mal. Seus
colegas na oficina eram todos muito unidos. Contudo ainda faltava-lhe algo
verdadeiramente seu. Continuou a lembrar de quando era pequeno, da verdadeira
paixão que nutria pela música.
A vida levou a
ocultá-la.
Ela, bravia,
adormece, é coberta, deixada de lado. Não morre. Reacende com fagulha que tarda
a acontecer, mas acontece. Em nosso íntimo não podemos ocultar por muito tempo
aquilo que nos faz nós mesmos. E o astro rei, até depois da mais violenta
tempestade, volta a brilhar e iluminar a alvorada de um horizonte desconhecido.
Ele lança um
olhar fixo a Carlos. Sorriem.
Sua esposa por
fim senta, tira o chinelo e põe os pés na areia. Seu coração acelera, também se
esquecera da liberdade. Põe a cabeça no ombro do marido e fecha os olhos, com a
música entrando em seu coração.
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