segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Levando areia da praia



Areias ao vento. A longa orla o deixa atônito. O horizonte parece não ter fim, não sabe para onde olhar. A alguns metros dali as ondas quebram, farfalhando na madrugada de um céu sem estrelas.  Sente a areia em seus pés. Havia se esquecido de como essa sensação é libertadora.  Afunda os dedos, brincando num ritmo descompassado. As luzes da cidade seguem a curva da praia até a ilha Porchat ao fundo. A antena de um dos poucos prédios da ilhota ergue-se acima de tudo e todos, seu ponto de luz vermelho é a única estrela brilhante no céu.

Apenas alguns refletores da praia estão acesos. Estão numa penumbra, que se confunde com a imensidão do mar logo à frente. Ao longe um grande navio cargueiro desfila.  Fechando os olhos consegue imaginar o barulho da embarcação vencendo as águas, imponente. Para onde iria? China, Holanda, Angola? Os tripulantes de certo teriam uma longa jornada nos próximos dias. Ou seriam semanas, meses até? Pensa na solidão que teriam que enfrentar. O Atlântico como melhor amigo...

Aperta a mão dela firmemente. Pela primeira vez desde que desceram no carro dá-se conta que estavam de mãos dadas. Fascinado pela mudança de ambiente conseguiu abstrair tudo o mais que ocorria em volta. Agora, com medo da solidão das águas que se misturam com o negrume da noite, abraça-a. Estão juntos há 15 anos. Metade de suas vidas. Quando ainda eram adolescentes e não tinham filhos costumavam descer a serra todos os finais de semana. Era uma época incrível. Preocupações escassas, os brilhos em seus olhos eram mais fortes, a chama do amor era majestosa, inabalável. Porém a vida atingiu-os com a fugacidade de um relâmpago numa noite de dezembro. Solitário, mas que desencadeou uma tempestade. Ser pai tão jovem não estava em seus planos.

Logo começou a trabalhar em dois empregos, não poderia deixar seu filho passar qualquer necessidade. Era o seu compromisso. Casaram-se ainda naquele ano. A lua de mel foi a última viagem que fizeram juntos. Depois a rotina deixou-os presos para a vida sem o viver. O cinza predominou às verdejantes montanhas que admiravam da janela do Opala quando desciam a serra. Trem. Asfalto. Poluição. Casas tão juntas onde não há espaço para nenhuma.

São duas da manhã. Não há quase ninguém na praia. Próximo dali, encostados na parede do canal, um grupo de amigos se reúne em volta de uma fogueira. Bebem diretamente das garrafas. As rápidas notas de um violão ecoam por alguns metros. São todos universitários. É final de junho, estão quase de férias, faltando apenas conferir algumas notas e arrumar as malas para voltarem para suas respectivas cidades. Não há preocupações. A música é leve, todos ajudam a cantar. Quase não conversam, apenas aproveitando a melodia.

O violeiro se cansa da função que estava exercendo. Um silêncio atinge o grupo, no entanto não consegue perdurar por mais que alguns segundos, sendo logo substituído por risadas aéreas, leves. São formadas duas ou três conversas diferentes. Assim permanecem por certo tempo. Carlos não participa de nenhuma delas. Gentilmente começa a brincar com o violão. Passa a cantar algumas músicas conhecidas em voz baixa, dedilhando nas cordas.   Depois de algumas faixas sua namorada o acompanha. Aos poucos o coro ganha adesão de todos. Ele vai mudando o estilo das músicas, até chegar numa que todos gostam, mas ninguém sabe o nome.
Uma mistura de Reggae e Indie que deixa o corpo mais leve e faz sentir melhor a areia nos pés.
-- De quem é mesmo essa música, Carlos? É muito boa. Pergunta um dos amigos ao final.
-- É minha.
-- Sua? Muitos ali também se mostram surpresos.
-- Sim, eu fiz semana passada.

Carlos tem 21 anos. Toca desde os 8. Estuda Psicologia. Já gravou dois discos numa pequena gravadora. Na sua cidade do interior duas de suas músicas foram para uma rádio local e foram pedidas mais vezes, porém não emplacaram. Dentro de duas semanas aquele som que acabara de tocar estaria também na mesma rádio, porém será pedida muitas vezes. Ele realizará seu sonho mais antigo.

Prossegue com as suas composições, já que estava tendo boa aceitação do público.

Alguns passos dali Marcelo, ainda de mãos dadas, perde no horizonte o cargueiro que estava acompanhando navegar. Desapareceu na noite. Resolve olhar para o outro lado. As flamas bruxuleantes da pequena fogueira se destacam. Ele ouve algumas notas do instrumento perdidas ao vento. Aos poucos vai se aproximando do grupo de amigos. Sua esposa não gosta muito da ideia, já está tarde e o cansaço a invade. Conseguiram deixar as crianças com os avós e, em uma pequena loucura repentina, fugiram do restaurante japonês, onde comemoravam o aniversário de casamento. Foram direto para a praia, as saudades daquela época onde podiam ouvir música juntos, cabeça no ombro, infinito azul à frente, bateram de um jeito incontornável. As barreiras se romperam e, afinal, não era tão distante. Ficou a sensação de que deveriam ter feito isso antes.

Mas ela estava fatigada, trabalhara durante a manhã inteira e depois arrumou a casa. Queria ir embora.

Cada vez mais próximo o casal começou a ser notado pelo grupo de amigos. As vidas começaram a se colidir na aleatoriedade completa do mundo. Eles estavam vestidos para um encontro num bom restaurante, já os amigos todos à vontade, sentindo a praia. Era evidente o choque de diferenças entre os grupos.

Em seu íntimo queria sentar na areia, curtir o som do violão e conversar com aquelas pessoas novas. Tinha vergonha de incomodar e precisavam voltar para Santo André ainda naquele dia.
A esposa puxava-o. Era realmente hora de partir.

Então um dos amigos falou para que sentassem mais próximos do som, que não tinha problema algum.
Algumas insistências depois ele sentou. Já ela não queria sentar na areia, iria se sujar.

Marcelo ficou bastante impressionado quando descobriu que as músicas eram do jovem rapaz de longos cabelos. Ele sempre quis aprender violão. Quando criança tinha uma alegria enorme em visitar os tios, pois sua tia sabia tocar com perfeição. Ela o ensinou o básico e o menino aprendia rápido, formando logo acordes. Nas horas vagas ele escrevia alguns versos, imaginando a melodia que poderiam ter. Porém sem a prática não conseguia dar prosseguimento e, quando se encontravam novamente, somente no ano seguinte, poucos eram os avanços. Depois da morte dela ele nunca mais tocara num instrumento como aquele.

A memória aquece seu coração.

A musicalidade nunca o deixou. Aos domingos reúne alguns amigos na laje e ensaia alguns tons no pandeiro. Mas não era a mesma coisa. Sentia que algo lhe faltava. Amava por demais a esposa e os filhos. O trabalho também não era de todo mal. Seus colegas na oficina eram todos muito unidos. Contudo ainda faltava-lhe algo verdadeiramente seu. Continuou a lembrar de quando era pequeno, da verdadeira paixão que nutria pela música.

A vida levou a ocultá-la.
Ela, bravia, adormece, é coberta, deixada de lado. Não morre. Reacende com fagulha que tarda a acontecer, mas acontece. Em nosso íntimo não podemos ocultar por muito tempo aquilo que nos faz nós mesmos. E o astro rei, até depois da mais violenta tempestade, volta a brilhar e iluminar a alvorada de um horizonte desconhecido.

Ele lança um olhar fixo a Carlos. Sorriem.
Sua esposa por fim senta, tira o chinelo e põe os pés na areia. Seu coração acelera, também se esquecera da liberdade. Põe a cabeça no ombro do marido e fecha os olhos, com a música entrando em seu coração.


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