sábado, 20 de maio de 2017

O último trem

Eu saí de bota. Estou particularmente feliz com isso. A chuva afirma-se afastando qualquer caráter de efemeridade. Veio para ficar, para deixar o céu turvo durante todo o fim de semana e isolar-se dos olhos mais atentos, impotentes diante de uma monotonia cinza. Anoiteceu e ela não cessou, de forma que meu calçado mostrou-se mais do que adequado. Digo isso pois normalmente escolho qualquer tênis, nem ao menos abrindo a janela para certificar-me do tempo lá fora. Então bastam as primeiras pisadas para sentir meus pés úmidos, desprotegidos por uma camada fina demais de tecido. Mas hoje não. Bom, é o mínimo que se podia esperar de planejamento. Já fazia dois dias que eu não saía de casa, apenas apreciando o conforto de meus ouvidos diante da carícia que a chuva faz no mundo além daquela minha pequena janela. É um conforto teimoso, que insiste em não encarar a realidade. Criando para isso uma nova, maligna.

Minha bota então vence as poças que se desafiam à minha frente. A calçada é de um mesmo cinza longo. Já passa da meia noite e é hora de voltar para casa. Foi um avanço, afinal. Cinco horas longe, respirando um ar purificado por gotas ainda virgens. Desço as escadas de uma estreita entrada do metrô. O vento é comprimido e ganha sabor de solidão.

Não há ninguém na estação. Observo a cena rara, ficando apreensivo por talvez ter perdido o último trem. Mas não. Ainda restam sete minutos, de acordo com o painel eletrônico falhado. Sete minutos apreciando uma solidão espelhada numa quarta feira sem objetivos. O outro lado da estação é separado pelos trilhos que partem para sentidos opostos. Está longe de ser um ponto chave da linha, então o espaço não é muito grande. Observo um homem descer pela exata escada de simetria oposta à que eu desci. Ele olha para baixo. Não para o celular ou vendo seus passos. Ele parece querer olhar para o nada, evitando qualquer horizonte. Senta-se exatamente no meio da fileira de cadeiras amarelas. Continua a olhar para o chão, sem que tenha percebido minha presença do outro lado. Apesar de jovem fica evidente, assim cabisbaixo, seu problema de calvície. Usa um jeans largo demais para seu corpo alto e de ossos salientes. Olhos insondáveis através das lentes de seus óculos retangulares. Se antes eu achava minha solidão dilacerante, a daquele sujeito parece me dar ainda mais agonia. Ao invés de sentir compaixão, de querer conversar com o sujeito e trocar solidões, sinto na verdade calafrios de vê-lo. Como se daqui, talvez uns 15 metros de distância, eu pudesse sentir sua energia mais do que negativa.

Chega o trem do sentido contrário ao meu. O homem entra num vagão praticamente vazio, com somente uma senhora dormindo tão profundamente que sequer nota a parada do veículo. Ainda assim, pela primeira vez, o sujeito levanta a cabeça, olha para os lados e escolhe sentar no assento preferencial, para então voltar ao seu transe sem horizontes.

Ainda faltam cinco minutos. O dispositivo eletrônico parece descompassado com meu relógio interno. Chego quase a sentir falta do jovem calvo, pois sei que agora meus pensamentos volverão à razão do meu sair e a razão do meu andar despretensioso pela metrópole. Você. Não consigo deixar de lembrar-me daquela noite.

Sob a luz cintilante de um manto de bilhões de mundos e estrelas era o universo de seus olhos que continha maior brilho. Nós, parados, observando um céu que parecia mero cenário para o evento onde estávamos.

Agradeço por estes pensamentos não se prolongarem, não dando margem a qualquer arquétipo de sofrimento premeditado. Porque outro homem surge na estação e se aproxima de mim. Restam quatro minutos. Meu cérebro pode enfim ocupar-se de outros devaneios além daquilo que me causa dor. Ele se aproxima ainda mais, já tomando uma distância desconfortável se levarmos em conta o vazio do lugar. Fico curioso com suas atitudes. O homem parece sentir mais frio do que eu. Veste um moletom preto e bastante pesado. O capuz encobre seu rosto e ocorre-me, somente agora, que talvez aquela cena fosse atentatória contra minha segurança. Que o metrô não era ilha em nosso mundo enfermo.
Tarde demais.

Sinto o cano frio da arma pulsar através da minha camisa fina. Ele senta na cadeira ao lado da que eu estou e vira a perna em minha direção. É o primeiro contato que tenho com alguém em dois dias. Como que por instinto, sem querer, dirijo meu olhar aos seus olhos. São opacos, carecem de brilho. O oposto aos seus. Droga, foi você a primeira pessoa que pensei nesta hora fatídica. Talvez o encontro de olhares tenha durado dois segundos, mas pareceu muito mais longo. O relógio marca que faltam três minutos e rapidamente desvio o olhar para baixo, ouvido as ordens do assaltante.

Não consigo parar de pensar nos olhos opacos e sem vida do cidadão, como se quisessem deixar claro que ali naquela situação a única pessoa que poderia perder alguma coisa era eu e que os objetivos dele transpunham a dose de humanidade que eu tentava carregar comigo. Recado dado. No entanto, sinto um enorme pesar pela indiferença dele e pela completa imprevisibilidade da minha existência. Naquele momento que meus olhos o encontraram felizmente ele não notou. Fico me perguntando o que aconteceria se tivesse percebido que eu descobri o segredo daquele rosto. Talvez eu tivesse levado um tiro, com o homem correndo para longe em seguida, assustado pelo barulho metálico ecoado nos trilhos que se perdiam numa escuridão sem fim. Então meu sangue escorreria por aquela estação de metrô vazia, manchando um chão cinza que já vira de tudo. E se o sujeito calvo ainda estivesse esperando? Será que aquele estampido teria sido suficiente para trazê-lo para a única realidade possível? Ou será que ele permaneceria o tempo todo de cabeça baixa, inerte diante da vida - e da morte - que cruzavam seu destino?

Penso ainda na mancha que escorreria pelo chão. Se eu morresse ali mesmo, antes de chegar ao hospital, haveria toda uma cena que quebraria momentaneamente a solidão do lugar. Chegaria a algum momento um funcionário do metrô, seguido pela polícia, depois algum paramédico. Em seguida talvez alguém da polícia científica, que trabalha de plantões as quartas e que enxergaria normalidade na cena, que fotografa para um inquérito que provavelmente seria arquivado. Porém, depois de todos esses especialistas, restaria meu sangue ainda com odor acre que por fim molha minha bota tão planejada. Alguém teria que limpá-lo. Imagino então o funcionário, ou funcionária, de limpeza do metrô no turno de manutenção, em que não há absolutamente ninguém por perto. Ele limpa o sangue de um cadáver já retirado, provavelmente perguntando-se de quem pertencia.  Se era jovem ou velho. Culpado ou vítima.         

                Já entreguei todos meus pertences. Os danos não foram muitos. Tinha 20 reais na carteira e meu celular já estava com a tela trincada, eu apenas estava adiando sua troca mesmo. O homem corre para fora antes de o relógio marcar um minuto.

Volto a pensar na pessoa que limparia meu sangue. Em sua solidão extrema, num processo de desumanização praticamente completo. De certa forma começo a recobrar a consciência após a dose de adrenalina. Eu sobrevivi àqueles olhos opacos. E, afinal, não estou tão só. Penso em todas as pessoas que teriam ficado arrasadas com a notícia. Sinto-me pequeno diante da minha própria existência regrada por esperanças alheias.  Vejo o trem se aproximar, lançando uma rajada de vento gélido que parece acabar com o sabor de solidão. Traz um ar de concretude, de metrópole, de vida.


Embarco. Há mais três pessoas no vagão, todas em seus celulares. Ainda assim, me sinto seguro, acompanhado. Vivo. E sem que esta vida precise do brilho dos seus olhos.

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